No fim da tarde, o apartamento em Nova York parece suspenso dentro de um aquário silencioso. As telas encostadas nas paredes guardam azuis ásperos, verdes que lembram campos dos arredores de Paris, rostos sem biografia de celebridade. Com mais de cem anos, Françoise Gilot se inclina sobre uma aquarela recente; a mão continua firme, disciplinada por décadas de teimosia. Ao lado, um exemplar gasto de “Life with Picasso” repousa aberto, lombada quebrada. Ainda ecoa, entre livros e tintas, a frase antiga e intacta: ninguém abandona um homem como eu.
Muito antes dessa sentença atravessar o ar, Françoise já conhecia outros imperativos, ditos em francês correto e autoritário, vindos da boca do pai. Filha única de um agrônomo ambicioso e de uma mãe que estudara arte e deixara os pincéis trancados num armário, nasceu em 1921, em Neuilly-sur-Seine, cercada de expectativas bem definidas. Nenhuma delas incluía óleo sobre tela. Aos seis anos, anunciou na mesa de jantar que seria pintora. Recebeu de volta um ultimato embrulhado em conselho. Vieram depois os títulos respeitáveis: baccalauréat aos dezesseis, estudos de direito e literatura, inglês elegante, uma trajetória cuidadosamente traçada rumo a uma vida segura. Em determinado momento, porém, decidiu desobedecer de modo irreversível: trocou as salas de audiência pelo ateliê, a letra da lei pela linha desenhada sobre o papel.
O pai tentou desfazer essa escolha na marra, rasgando desenhos, confiscando materiais, instaurando longos silêncios domésticos. Ela não recuou. Já atravessara a ocupação alemã, as ruas vigiadas de Paris, e começava a expor discretamente: aquarelas, gravuras, corpos que não pediam licença a ninguém para existir. Quando conheceu Pablo Picasso, em 1943, não era uma estudante distraída arrastada por acaso para dentro da história. Era uma artista no início de uma estrada difícil, uma mulher muito jovem com uma convicção obstinada: ou pintaria, ou não seria nada.
Ele entrou na vida dela com um gesto propositalmente simples. Em plena Paris ocupada, num restaurante, Picasso cruzou o salão com uma tigela de cerejas nas mãos e as pousou sobre a mesa onde Françoise jantava com uma amiga. Tinha sessenta e um anos; ela, vinte e um. Todos olhavam para ele. O homem célebre gostava desse tipo de entrada, transformando qualquer sala num prolongamento do próprio ateliê. Conversaram sobre pintura, não sobre penteados ou vestidos. Anos depois, ela lembraria a mistura peculiar que enxergou ali: inteligência veloz, humor cortante, certa ternura calculada, um encanto que cheirava a armadilha.
A relação não começou de imediato. Picasso rondou, telefonou, convidou, lançou comentários que soavam engraçados e discretamente ameaçadores, testando a resistência daquela jovem magra que desenhava nos cafés. Quando enfim passaram a viver juntos, em meados dos anos 40, a guerra ainda se desenrolava do lado de fora, mas dentro das casas em Vallauris e Antibes o conflito era outro: o convívio diário com um homem cuja fama chegava sempre antes de qualquer gesto, qualquer falha, qualquer carinho.
A casa funcionava como extensão do ateliê. Visitantes apareciam sem hora marcada: poetas, marchands, políticos, curiosos. Françoise circulava entre telas úmidas, pratos, brinquedos improvisados para as crianças que logo nasceriam dali, Claude em 1947, Paloma em 1949. Às vezes posava, imóvel, enquanto ele a examinava com olhos estreitos, convertendo a jovem de cabelos escuros em linhas quebradas, em curvas violentas. Em outros momentos, discutiam pintura, composição, as cores de Matisse, as deformações do próprio Picasso. Ela não se limitava a servir de modelo; corrigia, discordava, argumentava. Ele admirava esse brilho, desde que não ameaçasse o centro de gravidade da casa.
A assimetria não precisava ser explicada em voz alta. Estava na diferença de idade, no dinheiro, no prestígio, nos telefonemas que ele fazia para galeristas de meia Europa, bastando um comentário para promover ou sepultar carreiras. Estava também nas frases que repetia sem cerimônia, sentado à mesa ou no sofá, cigarro entre os dedos: para ele, havia dois tipos de mulheres, ídolos de altar ou tapetes em que se pisa sem olhar. Em outro momento, diante de Françoise, definiu-as como máquinas de sofrimento, peças necessárias para alimentar a própria imaginação.
O corpo dela entrou de vez numa iconografia já robusta. Nas séries em que aparece sentada numa poltrona, o rosto se divide em planos incompatíveis; a boca parece guardar um segredo que não se encerra. Enquanto isso, a pintura de Françoise tentava respirar num canto de mesa. Ela produzia figuras mais calmas, estruturas quase musicais, cores que buscavam ordem dentro do turbilhão doméstico. Queria expor; ele repetia que ainda não, que o momento certo viria, que o mundo não era generoso com mulheres artistas. Ao mesmo tempo, ocupava todos os espaços ao redor, como se a luz de um único refletor escorresse pelos móveis e apagasse contornos alheios.
As traições chegaram previsíveis, e ainda assim devastadoras. Outras mulheres surgiam, o riso complacente dos amigos ajudava a manter a engrenagem social em movimento, o recado era claro: em torno de um gênio do século vinte, “era assim que funcionava”. Françoise assistiu a cenas que pareceriam exagero num romance: crises de ciúme intercaladas com indiferença de pedra, humilhações privadas, um brilho quase lúdico no olhar dele ao avaliar até onde ela suportaria. Para quem lê suas entrevistas e memórias, fica a impressão de alguém que se descobre lentamente usada como combustível, não apenas como companheira.

Num dia aparentemente comum, no meio de uma discussão que não diferia muito de tantas outras, a frase veio límpida. Ela avisou que um dia iria embora, que chegara por vontade própria e sairia pelo mesmo motivo. Ele riu, ou mal se deu ao trabalho disso, e apenas afirmou, com a calma de quem recita um axioma pessoal: ninguém deixa um homem como eu. A resposta dela não pediu metáfora; um simples veremos ficou suspenso entre os dois, entre quadros, pequenas figuras espanholas, brinquedos das crianças.
A decisão amadureceu em silêncio. A partir de certo momento, cada episódio doméstico acrescentava uma pedra a uma espécie de barragem interna. Em 1953, depois de dez anos de convivência, duas crianças pequenas e incontáveis retratos seus espalhados pelo mundo, Françoise fez o gesto que tantos consideravam impraticável: recolheu os filhos e foi embora. Não houve dramatização pública, não houve entrevista coletiva, não houve cena preparada para aplauso. Houve uma mulher jovem fechando uma porta atrás de si, plenamente consciente do tamanho do adversário que acabava de adquirir.
A reação veio rápida. Picasso telefonou para galeristas e marchands, recomendando que ninguém a representasse. Advertiu que quem ficasse ao lado dela se afastaria dele. Alguns obedeceram sem hesitar; outros hesitaram e obedeceram do mesmo jeito. Na França, o ambiente azedou, e por muito tempo Françoise seria tratada como desertora. Enquanto isso, em ateliês menores e cidades menos centrais, ela continuava a pintar, insistindo em composições que pareciam desenhar um território próprio, afastado da sombra que ainda pesava sobre sua assinatura.
Em 1964, publicou o livro que alteraria de vez o equilíbrio de forças. “Life with Picasso”, escrito em parceria com o crítico Carlton Lake, não é uma coleção de fofocas, mas um relato minucioso de dez anos ao lado de um homem cuja personalidade se confundia com uma época inteira. Picasso tentou deter a publicação, processou, condenou, moveu o que pôde para abafar aquela voz que sabia demais. Não conseguiu. O livro virou best-seller, foi traduzido, alimentou discussões acaloradas. Alguns o chamaram de traição; outros enxergaram, pela primeira vez, a figura monumental do artista observada por um ângulo que lhe era francamente desfavorável.
Desde então, a imagem pública do pintor espanhol nunca mais voltou a ser completamente inocente. Décadas depois, com leituras feministas da história da arte e reavaliações de ídolos masculinos, as frases que ele lançara com tanta naturalidade na direção de Françoise reapareceram em ensaios, artigos, exposições críticas: mulheres máquinas de sofrimento, mulheres de altar ou de chão, mulheres consumidas até a exaustão em nome da arte. O que antes parecia excentricidade de gênio passou a ser visto como parte de um sistema inteiro, sustentado por instituições, museus, colecionadores.
Enquanto isso, a vida de Françoise seguia em tom bem menos ruidoso. Nos anos 70, casou-se com o cientista Jonas Salk e entrelaçou a própria biografia a outro nome ilustre; dessa vez, sem subordinação. Dividia o tempo entre França e Estados Unidos, dava aulas, escrevia, coordenava programas de arte. Continuou a produzir uma obra extensa, mais de oito décadas de trabalho hoje espalhado por museus como o Metropolitan e o Centre Pompidou, com pinturas e aquarelas marcadas por cores firmes, figuras que parecem conversar entre si sem necessidade de legenda.
Morreu em 2023, aos 101 anos, em Nova York. Por coincidência, ou capricho da história, pouco antes e pouco depois de sua morte museus ligados a Picasso passaram a enfatizar o lugar de Françoise em suas narrativas: a mãe de Claude e Paloma, a companheira de uma década fecunda, a mulher que, ao contrário de tantas outras, conseguiu sair viva do campo de gravidade do mestre e ainda contar o que viu ali dentro. Exposições recentes em Barcelona e Málaga, dedicadas à família e à relação entre os dois artistas, exibem fotografias, cartas, desenhos das crianças, além de obras de Gilot finalmente colocadas em diálogo com a produção do velho companheiro.
Hoje, quando se fala de Picasso e das mulheres à sua volta, o nome de Françoise aparece cada vez menos preso ao papel de musa. Ela ocupa um lugar desconfortável, e por isso mesmo necessário: testemunha e criadora ao mesmo tempo, responsável por abrir uma fenda na fachada brilhante do mito e, simultaneamente, autora de uma obra que recusa o posto de nota de rodapé. A imagem da jovem que um dia atravessou um restaurante em Paris com um caderno de desenhos debaixo do braço permanece colada à da senhora de cabelos brancos no ateliê nova-iorquino, inclinada sobre uma aquarela tardia. Entre uma e outra, cabe um século de história e uma decisão simples, rigorosa, quase muda: confiar mais na própria mão do que na frase de um homem célebre.


