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A série de faroeste que acaba de chegar à Netflix e vai te fazer prender a respiração a cada novo episódio Divulgação / SutterInk

A série de faroeste que acaba de chegar à Netflix e vai te fazer prender a respiração a cada novo episódio

A história de “Os Abandonados“ começa como um desses ecos de poeira que atravessam o faroeste, insinuando que nada ali está realmente morto: nem as disputas por terra, nem a velha fantasia de poder travestida de herança familiar. O curioso é perceber como a série se apropria desse imaginário sem qualquer pudor, tomando a fronteira de 1854 como cenário para um duelo que nunca se contenta em ser apenas confronto entre vizinhos. Desde o primeiro episódio, o enredo deixa evidente que não pretende dialogar com um Oeste épico e idealizado, mas com um mundo em que a ganância tem formas bastante contemporâneas, ainda que cobertas de poeira e rezas. Esse descompasso entre época e intenção funciona como ponto de partida para uma narrativa que busca inquietar mais do que confortar.

Fiona Nolan, interpretada por Lena Headey, sustenta o centro emocional da série. A personagem governa um rancho construído a duras penas, ao lado de um grupo que ela chama de órfãos, não por piedade, mas por reconhecer naquele pequeno coletivo uma possibilidade de família escolhida. Há beleza na forma como Headey dosa a firmeza com uma devoção que não se confunde com submissão religiosa. A fé de Fiona, apesar de constantemente posta à prova, não tem cheiro de autoengano; ela usa o credo como combustível para resistir às investidas de Constance Van Ness. Gillian Anderson, por sua vez, interpreta Constance com um rigor que às vezes beira a rigidez pétrea. A matriarca enxerga no subsolo prateado de Fiona a chave para preservar o legado dos Van Ness, e a disputa entre as duas cria um tabuleiro onde benevolência e crueldade duelam sem qualquer necessidade de máscaras.

O conflito, entretanto, não se esgota no enfrentamento direto. A série costura romances improváveis, tensões raciais, relações cruzadas entre jovens que carregam o peso de seus sobrenomes como quem arrasta correntes. Willem, interpretado por Toby Hemingway, insiste em assediar Dahlia, vivida por Diana Silvers, numa lógica de predador que só reforça a podridão silenciosa da família Van Ness. Do outro lado, Trisha Van Ness, interpretada por Aisling Franciosi, encontra em Elias, vivido por Nick Robinson, uma espécie de respiro — ainda que o romance oscile entre o ingênuo e o melodramático. Já Albert, interpretado por Lamar Johnson, oferece à narrativa uma perspectiva que poderia ter sido mais incisiva, sobretudo por mostrar como o território funcionava como máquina de desigualdades que se alimentava do corpo e da dignidade de quem ousava ocupar seus espaços.

Embora a série brinque com a ideia de comunidade, o roteiro parece hesitar quando tenta articular a presença indígena. Personagens como Lilla Belle, vivida por Natalia Del Riego, e Jack Cree, interpretado por Michael Greyeyes, têm função narrativa evidente, mas ficam presos a contornos mais simbólicos do que efetivamente dramáticos. A sensação é de que o faroeste continua produzindo zonas de sombra quando precisa lidar com as vozes que historicamente foram silenciadas. E, ainda assim, essas brechas revelam mais sobre a estrutura do poder ali do que o próprio conflito central.

O maior entrave de “Os Abandonados“ está na forma como a série tenta equilibrar brutalidade, discurso moral e espetáculo. O texto oscila entre uma fala estilizada, repleta de frases que querem soar memoráveis, e diálogos que parecem retirados de dramas juvenis. Essa inconsistência provoca uma estranheza curiosa: personagens que deveriam carregar a dureza de décadas são, por vezes, embalados por um vocabulário quase ornamental. A própria Constance, apesar da imponência de Anderson, carrega falas que soam como estilhaços de uma filosofia improvisada. Em contraste, Fiona cresce justamente por evitar essa grandiloquência. A força da personagem nasce da ação, não da retórica.

Ainda assim, há mérito no modo como a série provoca desconforto. A violência, física, simbólica e histórica, funciona como linha que costura relações de domínio e resistência. E, mesmo quando o enredo recorre a mecanismos previsíveis, permanece o fascínio de observar duas forças femininas disputando território num gênero que, por séculos, preferiu homens solitários como protagonistas. Esse deslocamento não redime os tropeços, mas introduz fraturas interessantes no mito do Oeste.

O final da primeira temporada sugere caminhos que não dependem de reviravoltas artificiais, mas de uma escolha mais ambiciosa: assumir que o faroeste pode ser menos sobre duelo e mais sobre o que resta quando a poeira finalmente baixa. Talvez aí esteja o ponto mais instigante da série. Não o confronto óbvio, mas a pergunta sobre que tipo de comunidade pode nascer quando os abandonados resolvem, finalmente, reclamar o que sempre lhes foi negado.

Filme: Os Abandonados
Diretor: Kurt Sutter
Ano: 2025
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★