A nevasca que engole a paisagem em “Os Oito Odiados“ sempre me pareceu menos um fenômeno climático e mais uma forma de isolamento moral. A cada revisão, essa sensação se intensifica: a geografia reduzida, comprimida no interior de Minnie’s Haberdashery, cria uma arena em que a única saída possível é a revelação gradual das intenções de cada figura em cena. A escolha de Quentin Tarantino por um espaço quase único não funciona como truque formal, mas como estratégia calculada para observar comportamentos quando não há horizonte para distrair ninguém. É nesse confinamento que John Ruth, vivido por Kurt Russell, insiste em arrastar Daisy Domergue, interpretada por Jennifer Jason Leigh, até a justiça oficial, mas o peso dessa decisão se altera constantemente conforme novas presenças ocupam o ambiente e distorcem o sentido do que seria uma simples entrega de prisioneira.
O percurso até o refúgio já indica que a narrativa não depende de reviravoltas pirotécnicas para gerar tensão. A interação entre o Major Marquis Warren, interpretado por Samuel L. Jackson, e Ruth funciona como primeiro teste de confiança, e a desconfiança se torna o motor de todas as conversas posteriores. Quando Chris Mannix, vivido por Walton Goggins, entra na diligência alegando ser o novo xerife de Red Rock, a jornada deixa de ser apenas uma condução de prisioneira e se transforma em um ensaio constante sobre autoridade, legitimidade e sobrevivência. Os diálogos longos, frequentemente apontados como excesso, atuam como método. Cada pausa e cada silêncio funcionam para avançar a compreensão do espectador sobre um conjunto de personagens que aparentam dizer mais do que sabem, ou esconder mais do que fingem compreender.
Ao chegar à estalagem, a narrativa se reorganiza. Lá dentro, Bob, representado por Demián Bichir, Oswaldo Mobray, interpretado por Tim Roth, Joe Gage, vivido por Michael Madsen, e o general confederado Sandy Smithers, interpretado por Bruce Dern, compõem um ambiente onde qualquer traço de convivência civilizada é ilusório. A partir desse ponto, o filme assume de vez sua essência de peça teatral, em que deslocamentos mínimos e gestos controlados redefinem a dinâmica de poder entre todos. A ausência de personagens virtuosos não funciona como provocação gratuita, mas como fundamento estrutural: cada pessoa ali tem uma história capaz de corroer a outra, e a soma de todas impede qualquer possibilidade de redenção. O suposto mistério sobre quem está mentindo funciona menos como quebra-cabeça e mais como exercício para mapear um país ainda dilacerado pela Guerra Civil, incapaz de entender o que significaria reconstrução.
O clima de confinamento, a violência gradativa e a retórica agressiva entre Marquis Warren e Smithers evidenciam a tentativa de Tarantino de examinar rancores históricos que permanecem inalterados sob nova roupagem. A linguagem racial, sempre motivo de debate em sua filmografia, aqui se converte em indicador de como a memória coletiva fracassa em elaborar seus próprios traumas. Ao invés de suavizar esse aspecto, o filme expõe de maneira direta o ressentimento que atravessa as relações ali dentro, e isso confere maior solidez aos conflitos que emergem pouco a pouco. Nada é gratuito: cada palavra dita com desprezo e cada provocação apontam para um acerto de contas que ultrapassa os indivíduos.
A condução da narrativa até seu desfecho não procura a catarse tradicional. A violência que surge no último terço não provoca alívio, apenas reforça a ideia de que a convivência entre esses personagens era insustentável desde o início. O enredo se fecha quando a aliança entre Warren e Mannix se forma não por afinidade, mas por necessidade prática, quase como um pacto improvisado entre inimigos que entendem que, diante da ruína, resta apenas administrar as últimas decisões possíveis. Essa conclusão amarga fortalece a percepção de que “Os Oito Odiados“ opera como exame rigoroso de um país incapaz de transformar conflito em entendimento. É justamente nesse desconforto que o filme encontra sua força: ao recusar saídas fáceis, obriga o espectador a encarar o que sobra quando toda justificativa moral se esgota.
★★★★★★★★★★




