A sucessão de releituras do romance de Stephen King costuma produzir resultados irregulares, mas a versão de Brian De Palma para “Carrie, a Estranha” permanece como um ponto de inflexão na representação do terror juvenil. A marca do filme não é artifícios ou pirotecnias visuais, e sim na forma como constrói, com capricho quase clínico, a trajetória de Carrie White, interpretada por Sissy Spacek com uma contenção que transmuta fragilidade em ameaça. Desde o primeiro ato, em que a violência escolar se revela mais eficaz que qualquer criatura sobrenatural, a narrativa organiza a vida da protagonista como um espaço fechado onde cada gesto alheio cumpre a função de vigiar, punir e finalmente destruir.
O episódio do vestiário, muitas vezes reduzido ao impacto imediato, adquire outra densidade quando observado como início de uma pedagogia do isolamento. A menstruação inesperada lança Carrie diante de um grupo que já havia decidido seu papel social: a da jovem cuja existência desconforta. Amy Irving, como Sue Snell, tenta romper esse padrão, mas sua tentativa de compensação ao convencer Tommy Ross, vivido por William Katt, a levar Carrie ao baile revela menos altruísmo e mais o desconforto de quem percebe, tarde demais, o caráter corrosivo da própria conivência. Nancy Allen, como Chris Hargensen, dá forma ao antagonismo direto, disposta a transformar o baile em palco de humilhação definitiva, com a cumplicidade irresponsável de Billy Nolan, interpretado por John Travolta.
Se a escola funciona como laboratório da crueldade, a casa de Margaret White é o ambiente onde essa lógica se intensifica. Piper Laurie cria uma figura materna cuja rigidez religiosa não se limita à crença: converte-se em método de controle absoluto. Seus rituais de punição e a clausura do armário assumem a função de uma doutrina doméstica que impede Carrie de compreender sua própria corporalidade. Nesse estrangulamento emocional, a telecinesia não parece um dom, mas um sintoma. A narrativa faz desse poder uma resposta orgânica à compressão contínua, algo que cresce porque não encontra saída.
O baile, tão frequentemente lembrado apenas como explosão de violência, resulta da soma de pressões que o filme organiza com paciência. A aparente trégua entre Carrie e os colegas, auxiliada pela ternura cuidadosa de Tommy, é menos um respiro e mais a ilusão final antes do colapso. O momento da chacota, arquitetado por Chris e Billy, deflagra uma sequência conduzida por De Palma com precisão simétrica: enquanto a câmera isola Carrie em um eixo de crescente dissociação, os que a cercam tornam-se figuras quase geométricas, reduzidas a fragmentos de gritos, quedas e incêndio. O massacre funciona menos como catarse e mais como desdobramento inevitável de um sistema que produz vítimas até que deixem de suportar.
Sissy Spacek imprime à personagem um percurso que desloca a narrativa de qualquer leitura simplista de vingança. O olhar que alterna choque e determinação, a rigidez corporal que se transforma em mecanismo de defesa, tudo traduz a passagem de adolescente vulnerável a agente de destruição que não compreende totalmente a própria força. O filme evita explicações morais e não oferece reconciliação: apenas expõe os efeitos de um ciclo de violência que ultrapassa o sobrenatural. A morte de Margaret, numa cena que combina fé distorcida e delírio punitivo, encerra a relação que definiu a vida de Carrie e que agora implode, como se a própria casa devolvesse o acúmulo de repressão.
Rever “Carrie, a Estranha” hoje implica reconhecer como a narrativa articula poder, medo e controle social. O terror não se limita ao sangue no palco do baile; ele se estrutura na constância das pequenas agressões e na forma como instituições familiares e escolares moldam identidades pelo constrangimento. A figura de Carrie persiste porque sua tragédia sintetiza algo mais profundo que monstros ou maldições: a pergunta incômoda sobre o que acontece quando uma sociedade inteira insiste em formar alguém apenas para depois destruí-la.
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