“O Chamado da Floresta” se articula a partir de um ponto de tensão que acompanha qualquer adaptação de um clássico literário: como lidar com um material consagrado sem transformá-lo em relíquia ou paródia. O filme conduz essa tarefa deslocando o eixo moral da narrativa de Jack London para uma proposta mais conciliadora, modulada pelo olhar de Michael Green e pela condução de Chris Sanders. O resultado revela um interesse evidente em suavizar a brutalidade que marca a jornada original, substituindo conflitos ásperos por uma experiência mais palatável, projetada para um público amplo. Essa escolha molda todo o percurso da história, da caracterização de Buck às relações humanas que permeiam sua trajetória.
A trama acompanha Buck, retirado de sua vida confortável na Califórnia e arremessado ao território inóspito da corrida do ouro. A partir de seu sequestro, inicia-se uma sequência de deslocamentos que o leva ao Yukon, onde passa a integrar um time de cães de entrega postal comandado por Perrault e Françoise, interpretados por Omar Sy e Cara Gee. Ambos funcionam como ponto de estabilidade temporária, oferecendo disciplina sem crueldade e delineando um ambiente em que Buck, apesar das adversidades, encontra espaço para aprender. A liderança que o animal assume dentro do grupo não decorre de triunfos espetaculares, mas de pequenas demonstrações de resistência, elemento que sustenta o arco de sua transformação.
Quando surge Hal, vivido por Dan Stevens, a narrativa experimenta sua inflexão mais dura. A figura do explorador ambicioso e desequilibrado adiciona uma face menos idealizada do contexto da época, enfatizando o colapso ético que frequentemente acompanhava a busca por riqueza rápida. A deterioração entre Hal e os cães evidencia o limite da estratégia de suavização adotada pelo filme: mesmo com o esforço de evitar violência explícita, a tensão moral permanece. É nesse ponto que John Thornton, interpretado por Harrison Ford, se torna peça estrutural. A presença dele desloca o centro emocional da história, conduzindo Buck para uma etapa marcada por introspecção e descoberta. Thornton não é tratado como herói; a atuação de Ford imprime cansaço, luto e uma certa disposição resignada. O vínculo estabelecido entre os dois nasce da necessidade mútua, não de sentimentalismo barato.
O uso intensivo de tecnologia para dar vida aos animais interfere na recepção inicial, especialmente em personagens cujo comportamento exige nuances complexas. Com o tempo, porém, a integração entre cenários naturais e criaturas digitais torna-se menos intrusiva, permitindo que a narrativa avance sem exigir constante suspensão de descrença. O filme aposta mais na expressividade emocional dos animais do que em naturalismo rigoroso, o que evidencia sua intenção de se afastar da brutalidade original. Isso se reflete também na forma como a relação entre Buck e o ambiente é construída: menos como confrontação direta e mais como um processo de assimilação gradual, culminando na descoberta de uma alcateia e no reconhecimento de uma identidade que ultrapassa qualquer laço humano.
O roteiro adota uma lógica de transição contínua, movendo Buck de uma esfera de tutela para outra até que ele finalmente se liberta da necessidade de pertencer a alguém. Essa passagem final, marcada pela convivência com os lobos e pela compreensão de sua própria força, reorganiza a mensagem central da narrativa. Em vez de enfatizar a violência que molda o instinto, o filme privilegia a ideia de adaptação como tomada de consciência. A história ganha ritmo mais consistente quando abandona a necessidade de justificar cada gesto do animal e permite que suas escolhas ecoem com mais naturalidade dentro do universo ficcional.
Mesmo com algumas hesitações estéticas, o filme estrutura seu núcleo dramático com clareza. A relação entre Thornton e Buck funciona como freio ético, contrapondo a ganância de Hal e os absurdos da exploração humana no norte gelado. Essa tensão internaliza uma pergunta que percorre toda a narrativa: até que ponto a domesticação, seja de homens ou animais, não se converte em forma de aprisionamento? A resposta, como sugerida nos instantes finais, permanece aberta. Buck encontra um caminho que o devolve a si mesmo; Thornton, por outro lado, parece compreender tarde demais que a fuga para a natureza não anula feridas antigas. Esse contraste amplia a densidade do encerramento e confere ao filme uma conclusão que evita sentimentalismo, preferindo sugerir que a liberdade raramente coincide com o conforto.
★★★★★★★★★★
