No Prime Video: Guy Ritchie surpreende com drama de guerra que entende que coragem não mora no front, mas no que se faz depois Divulgação / Amazon Prime Video

No Prime Video: Guy Ritchie surpreende com drama de guerra que entende que coragem não mora no front, mas no que se faz depois

A primeira impressão engana. Quando a narrativa se abre com o barulho seco das explosões e a poeira que insiste em pairar sobre cada movimento, o impulso inicial é esperar mais um desfile de estratégias militares e declarações inflamadas sobre patriotismo. Mas a história logo vira outra coisa. Existe uma pulsação quase clandestina por trás da ação, algo que atravessa o cenário bélico e se infiltra nos gestos, como se o filme dissesse que a verdadeira batalha não tem nada a ver com munição, e sim com a tentativa de não perder a própria consciência no meio do caos. O nome disso costuma ser coragem, mas aqui ela assume contornos menos gloriosos e muito mais íntimos.

Em “O Pacto“ dinâmica entre o sargento vivido por Jake Gyllenhaal e o intérprete Ahmed funciona como a engrenagem que impulsiona essa mudança de eixo. Não há romantização desse vínculo, tampouco tentativa de adorná-lo com frases de efeito. O que se vê é a colisão entre dois homens obrigados a negociar com a violência cotidiana, mesmo quando tentam se proteger dela. Gyllenhaal desenha um soldado duro, porém permeado por uma inquietação que ele mesmo tenta sufocar. Ahmed, interpretado por Dar Salim com olhar que atravessa a tela, é o tipo de figura que o Ocidente geralmente reduz a um estereótipo. Aqui, ele ganha profundidade, ritmo próprio e um senso de pragmatismo que incomoda justamente porque não se enquadra no imaginário heroico que conforta plateias.

Quando o intérprete salva o soldado, o gesto não vem embalado por virtudes cinematográficas fáceis. Ele nasce de uma lógica de sobrevivência atravessada por dignidade. Mais adiante, quando os papéis se invertem e o soldado decide honrar o que ficou pendurado entre eles, o filme deixa claro que essa escolha não acontece porque um regulamento militar mandou, mas porque existe uma dívida moral que insiste em respirar, mesmo quando governos preferem ignorá-la. Essa camada política funciona como uma sombra que acompanha cada decisão. Não é panfleto, é constatação. Ao longo das duas décadas de conflito no Afeganistão, promessas foram feitas, vidas foram descartadas e nomes desapareceram em arquivos cuja existência ninguém admite. O filme toca nesse ponto sem fazer cerimônia.

A jornada de retorno ao país, quando o soldado tenta resgatar Ahmed e sua família, transforma a narrativa em uma espécie de prova de caráter. Cada movimento parece exigir mais do que força física: exige disposição para confrontar a própria omissão. A tensão dos confrontos armados continua presente, e Guy Ritchie sabe construir esse tipo de sequência com precisão técnica, mas a estética não assume o protagonismo. O que domina é a sensação de que todo aquele deslocamento é, na verdade, um acerto de contas com aquilo que ficou engavetado na memória de ambos. É nesse momento que Gyllenhaal atinge um dos pontos mais altos de sua carreira recente. Ele cria um personagem que tenta se agarrar ao pouco que ainda o faz acreditar que vale a pena voltar vivo.

Ahmed, por sua vez, carrega no silêncio tudo o que o filme discute sem transformar em discurso. Lealdade, medo, exaustão, esperança. Cada emoção passa pelo rosto dele como alguém que calcula, em segundos, se o próximo passo é um ato de coragem ou uma sentença de morte. É esse contraste que fortalece o coração emocional da história e impede que ela resvale na redenção fácil. O pacto entre eles, aquele que nomeia o filme, não é uma metáfora suave. É uma responsabilidade incômoda.

Quando o filme se aproxima do fim, o que fica não é a lembrança das explosões, mas a pergunta que se instala com teimosia: o que cada um faz quando percebe que ninguém virá corrigir a injustiça que testemunhou? Nessa hora, o filme não oferece consolo. Apenas devolve ao espectador a noção de que as guerras não terminam quando o último tiro é disparado. Elas persistem nas escolhas posteriores, naquilo que cada pessoa decide carregar ou abandonar. Talvez a verdadeira coragem esteja aí. Na recusa de esquecer. Na recusa de fingir que não houve dívida. “O Pacto” se impõe como um lembrete incômodo de que o heroísmo, quando existe, raramente faz barulho.

Filme: O Pacto
Diretor: Guy Ritchie
Ano: 2023
Gênero: Ação/Drama/Guerra
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★