Há algo de irresistível na mitologia dos fora da lei. São figuras que atravessam fronteiras entre o crime e a lenda, entre o fascínio popular e a condenação moral. “Tee Yai: Nascido Para o Mal”, dirigido por Nonzee Nimibutr, revisita esse território ambíguo com um olhar que mistura reverência e desencanto. O filme não quer apenas reviver a história de um criminoso célebre da Tailândia dos anos 1980, mas questionar o próprio mecanismo que transforma um homem em mito, e o mito em mercadoria. Entre o retrato do bandido carismático e o estudo sobre o poder das narrativas, o longa se equilibra num fio tênue, sem decidir se quer decifrar Tee Yai ou perpetuá-lo.
A trama acompanha o lendário assaltante interpretado por Apo Nattawin, uma figura envolta em rumores de poderes sobrenaturais, idolatrado por uns e caçado por outros. A lenda diz que ele podia desaparecer diante da polícia, fazer chover quando precisava escapar, e enganar qualquer inimigo. Nonzee, no entanto, tenta desmontar essa aura mágica: seu Tee Yai é um homem que depende de aliados, estratégias e um senso quase instintivo de sobrevivência. O misticismo que o cerca é um espelho da sociedade que o criou, uma comunidade que prefere acreditar no milagre em vez de encarar a desigualdade e o desespero que o tornaram possível.
Ao lado de Rerk, interpretado por Wisarut Himmarat, Tee Yai forma uma dupla que dá ao filme seu núcleo emocional. Um é o instinto puro, o outro, a consciência vacilante. Entre eles há um vínculo que transcende a amizade, uma cumplicidade que lembra as antigas tragédias, onde o afeto e a traição caminham lado a lado. Quando uma mulher entra na vida de Rerk, a lealdade entre os dois se rompe, e o que antes era um pacto de sobrevivência transforma-se em um duelo silencioso de orgulho e perda. Nonzee parece mais interessado nesse abismo humano do que nos tiroteios e perseguições. A violência está presente, mas como consequência inevitável da erosão da confiança, não como espetáculo.
Há um detalhe curioso: embora o filme se passe nos anos 1980, tudo parece limpo demais, quase asséptico. A fotografia digital excessivamente nítida dilui a sensação de época, tornando a recriação do passado mais uma simulação do que uma imersão. É como se a memória de uma nação tivesse sido comprimida em alta definição. Ainda assim, há momentos em que o passado respira, na textura dos figurinos, no ritmo das canções populares, na nostalgia melancólica que permeia o olhar dos personagens. Essa ambiguidade entre o real e o reconstruído talvez seja a maior virtude estética do filme, mesmo quando parece acidental.
Apo Nattawin entrega uma performance que flutua entre a sedução e o cansaço. Ele não tenta convencer o público da inocência de Tee Yai, tampouco o glorifica. É um retrato de um homem que parece condenado a ser mal interpretado, um corpo sobre o qual o povo projeta suas frustrações e fantasias. Há uma ironia amarga nisso: o herói popular que nasce do caos social acaba sendo aprisionado por sua própria lenda. A certa altura, já não sabemos se Tee Yai acredita em seus supostos poderes ou se apenas aprendeu a usar o mito como disfarce.
Mas o filme tem suas falhas. Falta-lhe o vigor dramático que sustentaria a promessa de uma tragédia moderna. As sequências de ação são competentes, mas previsíveis. O ritmo se alonga sem urgência, e a emoção parece sempre à beira de acontecer, mas nunca explode. É possível sentir a intenção de transformar o mito em um estudo de caráter, mas a narrativa se dispersa, como se temesse confrontar a complexidade que o próprio roteiro anuncia. Há momentos em que o sentimentalismo invade o espaço da reflexão, enfraquecendo o impacto que poderia ter sido devastador.
Mesmo assim, “Tee Yai: Nascido Para o Mal” tem algo que o torna interessante: a consciência de que toda lenda é uma ficção conveniente. O diretor não tenta reescrever a história para absolvê-lo, mas para mostrar que por trás de cada herói marginal há uma rede de lealdades, medos e ilusões. Tee Yai não sobreviveu por mágica, mas porque aprendeu a ler o mundo ao seu redor melhor do que aqueles que o perseguiam. No fim, a lenda persiste não pela veracidade, mas porque o público precisa acreditar que o impossível ainda é possível.
O que o filme entrega é uma parábola sobre o poder das narrativas. A Tailândia que o venera e o mundo que o assiste à distância compartilham a mesma pulsão: a de transformar homens comuns em ícones, desde que a história sirva para entreter e apaziguar. Talvez essa seja a verdadeira magia de Tee Yai, não desaparecer diante dos olhos da polícia, mas continuar existindo no imaginário coletivo, onde o crime e o mito se confundem, e o mal ganha, por um instante, o brilho fugaz de uma promessa de liberdade.
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