A elegância que apodrece: Christian Bale vive o retrato mais frio e fascinante da ambição moderna, agora na Netflix Divulgação / Lionsgate

A elegância que apodrece: Christian Bale vive o retrato mais frio e fascinante da ambição moderna, agora na Netflix

O ponto de partida é um cotidiano milimetricamente controlado. Um jovem yuppie de Manhattan repete treinos, máscaras, cardápios e marcas com disciplina quase clínica, como se cada passo no banheiro, no táxi e na mesa de restaurante fosse parte de um cartão de visita pessoal. Entre reuniões, coquetéis e reservas disputadas, ele mede relações por objetos — cartões de visita, ternos, fontes, logotipos — e por quem consegue nomear o lugar mais concorrido da noite. As fissuras aparecem fora de horário, quando a vigilância cai e o impulso toma a frente: o olhar fixa, a respiração altera, a mão pesa. É nesse desvio que “Psicopata Americano” encontra o eixo da sua narrativa e instala a pergunta que move o suspense: quanto da violência insinuada nas brechas do luxo é fantasia, e quanto é ato consumado?

Na tela, “Psicopata Americano” tem direção de Mary Harron, com Christian Bale no papel de Patrick Bateman, Reese Witherspoon como Evelyn, Chloë Sevigny como Jean, Jared Leto como Paul Allen e Willem Dafoe como o detetive Kimball. A obra adapta o romance homônimo de Bret Easton Ellis, reduzindo o inventário de marcas e ampliando a experiência visual e sonora de uma mente que alterna cálculo e descarga. Harron escolhe humor negro como via de acesso, sem diluir o horror: risos aparecem em protocolos ridículos seguidos à risca, em conversas que trocam convicções morais por slogans e em reuniões em que a disputa por distinção cabe num retângulo de papel com tipografia caprichada.

O enredo avança pela rotina de Bateman: escritórios de vidro, restaurantes com fila, limusines, academias. Durante o expediente, o protagonista pratica cordialidade automática; à noite, busca alvos fáceis e tenta manter a fachada. O filme constrói ameaça com procedimentos observáveis: portas que se fecham, música alta que isola cômodos, plástico estendido com frieza doméstica, serras e machados guardados como se fossem utensílios de limpeza. A câmera alterna distância clínica e proximidade desconfortável, exibindo suor, pele, lâminas bem cuidadas e manchas que não saem à primeira esfregada. Nesses momentos, o terror resulta de ritmo e contraste: o silêncio da preparação, a explosão repentina, o retorno à calma na manhã seguinte.

Christian Bale articula vaidade, impaciência e vazio em uma composição que oscila entre máscara e surto. O sorriso que fecha reuniões não difere tanto do sorriso que antecede um golpe, e o corpo do ator sustenta essa continuidade: bíceps definidos, rosto polido, postura ereta, tudo a serviço de uma persona que quer dominar a imagem a qualquer custo. Chloë Sevigny encarna a secretária que percebe sinais e hesita entre cuidado e recuo; seus olhares prolongados registram mudanças mínimas de humor do chefe. Reese Witherspoon oferece o plano afetivo que o protagonista trata como checklist social. Jared Leto funciona como espelho de vaidade e alvo fácil; seu Paul Allen confunde nomes, exibe status e, por isso mesmo, vira peça útil no jogo. Willem Dafoe conduz a investigação com tom incerto, um procedimento que o filme explora com variações de tomada: algumas cenas do detetive parecem insinuar que ele sabe, outras sugerem dúvida real, e essa ambiguidade mantém a pressão.

A direção trabalha a estética do excesso com ironia. Restaurantes caros servem pratos ínfimos descritos com léxico pseudo-culinário, apartamentos exibem limpeza que beira o laboratório, ruas noturnas brilham com néon que promete prazer rápido. A fotografia explora brancos, superfícies lisas e reflexos, como se a cidade fosse um espelho que devolve a mesma imagem para todos que sabem o código. Em contrapartida, o som é o lugar onde a ameaça entra: ruídos de plástico, água, lâmina contra metal, respiração acelerada, música pop comentada com entusiasmo quase acadêmico antes de golpes que sujam paredes. Esses contrastes fundamentam a experiência de terror: não há monstros sobrenaturais, mas procedimentos que isolam, cegam e deixam o ataque previsível apenas para quem está dentro da cena.

A sátira se cumpre nos detalhes que o protagonista valoriza. Bateman fala de ética em mesas onde ninguém escuta, repete lugares-comuns sobre justiça social e empatia e, em seguida, avalia colegas por quantas reservas conseguem, que tipo de droga preferem e qual gravata combina com o charuto da moda. A cidade beneficia o disfarce: nomes se confundem, secretárias filtram ligações com educação mecânica, parceiros fingem reconhecer rostos para evitar constrangimento. Nesse caldo, confissões podem soar piada; violência pode passar por fofoca mal contada; alertas soam como exagero de alguém estressado. O horror nasce do acordo tácito: manter a roda girando, custe o que custar.

Harron usa encenação simples para sugerir colapso gradual. Em corredores, a câmera acompanha Bateman em travellings que parecem medir o controle dele sobre o espaço; em banheiros, os espelhos multiplicam o personagem como se nenhuma superfície devolvesse algo estável; em escritórios, os enquadramentos rebaixados ressaltam papéis, presilhas, cartões e outros objetos que definem hierarquias invisíveis. O humor negro não depende de tiradas; insiste em rituais repetidos que colam como verniz sobre atos de brutalidade. A repetição de músicas pop, comentadas com falsa erudição, cria trilha para a escalada: começa como conversa de salão e termina justificando a própria violência com falas sobre ritmo, batida e limpeza de produção.

O thriller ganha corpo quando a polícia se aproxima. O detetive de Dafoe cruza horários, visita restaurantes, testa informações com pausas calculadas. Nessas cenas, a montagem alterna versões de uma mesma conversa, em variações de tom que fazem o espectador desconfiar da memória de Bateman e da capacidade dele de manter a máscara. A pressão cresce sem reviravoltas artificiais: são pequenos desencontros de agenda, cartões que não batem, recados que chegam fora de hora. O terror, aqui, não é o susto, mas a constatação de que a cidade aceita qualquer versão contanto que a roda social não pare.

Como adaptação, “Psicopata Americano” reduz a lista enciclopédica de marcas do livro e investe em visualidade e tempo de cena para construir ironia e ameaça. A diretora não tenta coroar o protagonista como símbolo único; prefere exposição paciente de um ecossistema que o permite existir. O filme preserva ambiguidade sem sublinhar respostas: o que foi visto de fato? o que foi projetado? Essa decisão mantém a discussão dentro da experiência do espectador, que mede pistas e lacunas a partir de objetos, ações e sons, em vez de explicações.

O desfecho evita moralização e reforça a leitura de mundo em que culpa, quando existe, não encontra lugar para se fixar. Bancos seguem abertos, reservas continuam disputadas, credenciais circulam. A cidade volta à sua música ambiente, e o protagonista retorna aos ritos que lhe garantem pertencimento. No espelho luminoso do banheiro, ele ajeita o cabelo, ajusta o terno e, ao fundo, o azulejo branco guarda manchas que a luz fria não esconde.

Filme: Psicopata Americano
Diretor: Mary Harron
Ano: 2000
Gênero: Crime/Drama/horror
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★