Cadeias são a materialização por excelência do fracasso do homem como ser racional. Por mais que todos saibamos que é impossível renunciar a mecanismos de coerção de certas pessoas, no intuito de, quiçá, chamá-las de volta ao mundo civilizado, sempre há boa dose de trauma coletivo ao se tocar em assuntos como a necessidade da devida penitência a gente que, por um ou outro motivo, rompe com o contrato sob qual vivemos — embora nunca tenhamos assinado documento algum — e que estipula que todos nós temos o direito de ganhar a vida, trabalhar, contrair empréstimos, quitá-los, casar, ter família, ser feliz, ser infeliz, desde que nossas vontades não se choquem com os planos dos outros. A questão do encarceramento e desencarceramento açula
ânimos e azeda humores ao passo que vira assunto inesgotável para pesquisadores ideologicamente diversos. Em “Luta por Justiça”, Destin Daniel Cretton enfronha-se nesse universo espinhoso, mirando um episódio real e absurdo dos registros do judiciário americano. Seu filme é um lembrete do cinema para que isso não se repita, mas parece que muitas vezes os poderosos ouvem apenas o som de sua própria voz.
Baseado em “Just Mercy: A Story of Justice and Redemption” (“apenas piedade: uma história de justiça e redenção”, em tradução livre; 2014), de Bryan Stevenson, Cretton e o corroteirista Andrew Lanham revisitam a história de Walter McMillian (1941-2013), condenado à morte pelo assassinato brutal de Ronda Morrison (1968-1986), uma garota branca de dezoito anos. Os relatos de Stevenson cercam a pena capital por várias frentes, e todas de alguma forma culminam no racismo — numa análise mais apressada. A primeira sentença de morte em colônias americanas subordinadas ao Império Britânico de que se tem notícia data de 1608, quando o capitão George Kendall (1570-1608) foi fuzilado em Jamestown acusado de espionagem em favor do governo espanhol. De lá para cá, foram 15.391 execuções por fuzilamento, cadeira elétrica e, mais recentemente, injeção letal, o método mais moralmente aceito, uma vez que não degringola no show de horrores de miolos espirrando de crânios arrebentados ou olhos que explodem num macabro rio de sangue depois da última agonia do sentenciado, potencial candidato a mártir, por mais abjeta que tenha sido sua falta. Desde que a pena de morte foi restabelecida nos Estados Unidos, em 1976, foram executadas 349 pessoas negras entre 1.022 execuções, ou 34% do total. McMillian, o Johnny D., faria parte dessa estatística fúnebre, não fosse a atuação firme de Stevenson, um jovem advogado que ousou confrontar a lógica do tal sistema. Como ele verificaria depois, o preconceito racial infelizmente não era o único ponto a ligar os condenados.
McMillian voltava para casa depois de um dia de trabalho nas plantações de eucalipto de Monroeville, Alabama, quando foi abordado pela polícia. Não por acaso, Monroeville é a cidade natal de Harper Lee (1926-2016), que criou Atticus Finch, o protagonista de “O Sol é para Todos” (1960) a partir das memórias do pai, um especialista na defesa de cidadãos negros durante os anos 1930. Ele é obrigado a sair do carro, rendido e ouve que pesa contra ele a acusação de ter assassinado Ronda, depois de ter tentado estuprá-la. O diretor corta para Stevenson atendendo Henry Davis, um interno da Prisão Estadual de Holman, em Atmore, e a conversa entre esses dois homens pretos, quase da mesma idade e de origem parecida é um dos grandes momentos do filme. Michael B. Jordan e J. Alphonse Nicholson preparam o espectador para o que virá na sequência, malgrado a visita de Stevenson para Davis lembre mais o reencontro de velhos amigos falando de episódios em comum da infância e adolescência. O advogado fica sabendo que McMillian, cujo caso já conhecia, também é um custodiado da Holman; ele tenta convencê-lo a aceitar sua interferência, mas a aproximação inicial é desastrosa.
Enquanto Stevenson não tem a confiança de McMillian, Cretton concentra-se em Herbert Richardson e Anthony Ray Hinton, dois vizinhos do personagem central no corredor da morte. Richardsoné um veterano do Vietnã que desenvolveu uma resistente síndrome do estresse pós-traumático e acabou matando uma jovem quando a bomba que instalara em sua varanda explodiu. A atuação de Rob Morgan personifica a instabilidade dos presos e serve de introito à reviravolta que marca a vida de McMillian. Demora, porém Jamie Foxx atinge o potencial dramático que se esperava desde o início, ao passo que o Ralph Meyers de Tim Blake Nelson derruba a tese da execução apenas para afrodescendentes. Só há que lamentar-se o desperdício de Brie Larson.
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