A volta daquele que nunca vai: Seu Osvaldo conversa com o correspondente de nossa coluna lá em Quiprocó

A volta daquele que nunca vai: Seu Osvaldo conversa com o correspondente de nossa coluna lá em Quiprocó

Parece que o Seu Osvaldo ficou bravo com seus quinze minutos de fama nesta Bula, não gostou de fato nem de retrato, agora está com medo de ser reconhecido lá na rodoviária de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul. Pior ainda: ser alvo de chacota no forró da terceira idade que gosta de ir sábado sim, sábado não, lá no bairro das Aroeiras Vermelhas de Rio Oco da Silva.

Quem me contou foi o Dênis Enrique, velho amigo que mora em Quiprocó aos fins de semana e de segunda a sexta dá expediente na capital. Quem conhece o Dênis Enrique em Quiprocó visualiza a imagem de um cara de havaianas, bermudão colorido, sossego em pessoa. Quem conhece o Dênis Enrique na capital enxerga o nó meticuloso na gravata sempre presente, já pensa em se dirigir a ele tratando-o por doutor e, pigarros para cá, pigarros para lá, tergiversa antes de qualquer abordagem porque o homem além de poderoso é estressado, veja só.

Pois entre vindas de sextas à noite e idas de segunda de madrugada, o Dênis Enrique é um dos frequentadores mais contumazes e inveterados da quase sempre esplêndida rodoviária de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul. Seu Osvaldo conhece Dênis Enrique pelo nome. E pelo sobrenome — que esta coluna pretende não revelar hoje. Seu Osvaldo conhece a mulher do Dênis Enrique. Seu Osvaldo conhece o filho do Dênis Enrique. Seu Osvaldo conhece o gato de estimação do Dênis Enrique. Seu Osvaldo parece que é primo de segundo grau do avô paterno do Dênis Enrique, falecido, que Deus o tenha, amém.

— Firme, Seu Osvaldo? — cumprimentou-o Dênis, noite de domingo passado, faltando o quê?, meia hora mais ou menos para a partida do ônibus para a capital.

— Igualzinho um prego na areia de ponta cabeça, rapaz. Isso é pergunta que se faça num domingo à noite? Firme… Nem firme nem novela, que hoje é dia de Fantástico. E eu estou perdendo.

— Perde nada, Seu Osvaldo. Quem perde é o seu Corinthians…

— Vai pegar o próximo ou veio pra garantir lugar no de amanhã cedinho? — o velho já estava impaciente, mas ao mesmo tempo acostumado à rotina rodoviária do nosso correspondente em Quiprocó.

— O próximo, Seu Osvaldo, o próximo… Na janela, hein?! Que não gosto de ser incomodado por ninguém se levantando para ir ao banheiro. Aquele esquema, né? Tomo uma dosezinha daqui a pouco ali no Bar do Macaco Prego e apago antes ainda do motorista dar a partida. Só vou acordar quando a réstia do sol amanhecido bater na vista pela janelinha da frente do ônibus, lá pelas seis da manhã, com o veículo já sacolejando e o motora queimando o radião com as tretas do trânsito da capital.

Dênis falou isso e meio que se arrependeu. Olhou para trás, viu que não tinha mais ninguém na fila. Calculou que se desse corda o Seu Osvaldo iria embalar reclamações, colar lorota uma na outra e até mesmo o goró no Macaco ficaria comprometido. É. Todo mundo compra mesmo passagem no aplicativo. Seu Osvaldo tem espaço demais na agenda para prosear a vida. Pobre Dênis: vai dar tempo do Seu Osvaldo emitir sua passagem devagarinho devagarinho e ainda repetir umas cinco vezes toda a sua lista de causos da semana.

— Aquele seu amigo jornalista, hein?! Escrevendo bobagem sobre mim. Depois como vou me explicar para as moças lá do forró? Eu já estou ficando mal-falado nas quebradas das Aroeiras Vermelhas.

— Ah, Seu Osvaldo. Liga não. É tudo crônica, sabe? Ficção. Pessoal sabe que mais da metade é mentira. E o resto é pura invenção do meu amigo.

— Pior nem é isso. Pior foi a foto. O danado escrever sobre mim, ainda vá lá, dizem que o país está livre, né? Então não tem mais controle mesmo, cada um escreve o que quiser, do jeito que quiser, tem gente que divulga até que a Terra é plana, que vacina transforma pessoa em crocodilo…

— Jacaré, Seu Osvaldo, jacaré.

— Tudo igual, tudo igual. Tem quem inventa que estão ensinando pornografia homossexual pra criançada nas escolas, que agora nem banheiro mais é dividido pra homem e pra mulher. Tem muita boataria. As pessoas escrevem, escrevem. Pior que mais pessoas do que as que escrevem são as pessoas que leem, repassam pra frente, acreditam. Onde já se viu!? Duvido que quem acredita consegue mostrar um caso verdadeiro assim. Duvido! Ninguém nunca viu um jacaré vacinado! Tudo invenção. Feique, como se diz hoje, né?

Seu Osvaldo é um cara esclarecido ali no seu mundinho analógico de gabinete. Ajeitou o quepe, reposicionou a cadeira no guichê apertado e continuou o papo:

— Mas como eu ia dizendo, Dênis: pior foi a foto. Poxa vida, eu sou um senhorzinho até garboso, bem apessoado, não é não? Ó só, passo até perfume para vir trabalhar. Camisa sempre na estica, impecável. Impecável. Aí vem o seu amigo e bota uma foto nada a ver, de um velho feio, cara de turrão. Assim eu fico ruim na foto. E foto hoje em dia é tudo, não é mesmo? Como se diz mesmo: uma imagem vale mais do que mil reais?

— Mil palavras, Seu Osvaldo. Mil palavras. Até porque mil reais não andam valendo muita coisa, não…

— Pois é. Custava dar uma buscada nas internets e botar lá uma foto minha verdadeira? Custava?

— Ah, Seu Osvaldo — e aqui tenho de agradecer, porque o Dênis Enrique foi defensor deste cronista e praticamente um advogado do editor desta Bula, o cara que define as fotos —, liga não porque é assim mesmo. Internet é assim: às vezes não dá para colocar qualquer foto. Tem que ser boa, mas não boa no sentido de representar bem sua cara ajeitada. Boa no sentido de ter apelo, conquistar o clique do leitor… Coisas de internet.

— Pois olhe bem aqui, Dênis, olhe só essa foto e me diga se não é boa.

Seu Osvaldo apanhou o celular, abriu o WhatsApp e mostrou ao meu amigo a retratinho dentro do círculo do aplicativo.

— É boa — Dênis já salivava pensando no boteco do Macaco, mas via que os ponteiros do relógio avançavam indiscutíveis, ameaçando seu ritual.

Dênis me contou que a foto até que era bonita. Autêntica, foi a palavra usada por ele para a descrição. Estava lá o Seu Osvaldo uns anos mais moço, sentado numa cadeira de vime, calção branca, camisa vermelha desabotoada como se fosse um domingo à tarde.

— Foi meu sobrinho que tirou. O moleque é bom em fotografia — explicou. — Foi no último churrasco que minha irmã veio me visitar, uns meses antes da pandemia. Conhece a minha irmã, a Dirce? Conhece, né? Era amiga do seu pai, acho que estudaram na mesma turma.

Dênis lembrava vagamente da Dona Dirce, assentiu só com a cabeça, queria encurtar de vez a chateação.

— Coitada da Dirce. Nunca mais veio porque mesmo depois que acabou a pandemia, não pode mais com estrada. Artrose, sabe? Reclama muito das dores. Também, por que foi inventar de ir embora de Quiprocó, não é mesmo? Agora está lá, longe da família, uma hora e meia daqui…

Aos pés de Seu Osvaldo, na foto, um vira-lata caramelo morde uma das sandálias.

— Foto boa, não é?

— Boa, seu Osvaldo. Pois manda para o jornalista. Não vejo motivo para ele não aceitar publicar.

— Preciso pedir? Como assim? Absurdo. Já está na internet, não está? Ou a internet não é essa coisa toda moderna e esperta que pega tudo e sabe tudo da gente? Se tá no zap, tá na internet. Ou a internet só presta para gente tomar golpe?

Faltavam menos de dez minutos para o ônibus do Dênis sair. E nada indicava que Seu Osvaldo iria parar.

— Garanto que se tivessem visto essa minha foto, ah, esse rapaz bonito aqui, todo dominical, pose de gente com a vida ganha, já tinham dado golpe até no Tião, que inclusive já morreu, o lazarento…

— Quem é Tião, Seu Osvaldo?

— Esse cachorro aqui, Dênis. Morreu esses dias. Quase 20 anos. Agora fiquei só com o chinelo velho que o danado gostava de morder. Não uso mais, tá todo destroçado. Mas não vou jogar fora… — engoliu em seco, como se houvesse um nó difícil de desatar no fundo da garganta. — É lembrança do Tião.

Seu Osvaldo continuava admirando a foto na tela do celular. Dênis espiou novamente. Agora achava que tinha um quê de poesia naquele cão bege mordendo os chinelos velhos. Tião e Osvaldo compartilhavam a mesma expressão: uma mistura de brabeza com divertimento, uma certa indiferença porque o domingo estava acabando e, no caso do bilheteiro da rodoviária, o trabalho começava logo mais, com as vendas das passagens dos ônibus noturnos como aquele lá que o Dênis pegaria, os que partiam na hora do Fantástico com destino à capital.

Seu Osvaldo ainda suspirava fundo, caquético sorumbático, quando a foto foi sobreposta por uma nova mensagem no WhatsApp.

— Olha aí, Dênis, não falei? Outro tentando dar golpe. Ainda vou aprender caratê.

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.