A trama começa com duas amigas inseparáveis na Londres contemporânea. Milly, extrovertida e impulsiva, construiu família e carreira; Jess, mais silenciosa, organiza a própria vida entre um relacionamento estável e o desejo de ser mãe. Quando um diagnóstico altera a rotina de Milly, tudo que antes parecia inabalável precisa ser renegociado: trabalho, filhos, casamento, corpo e principalmente a maneira como cada uma enxerga a presença da outra nos dias seguintes. O enredo de “Já Estou com Saudades” apresenta esses deslocamentos com atenção ao cotidiano, atento a pequenas decisões que pesam como encruzilhadas.
Dirigido por Catherine Hardwicke e protagonizado por Toni Collette e Drew Barrymore, o filme adapta o texto de Morwenna Banks, derivado da peça radiofônica “Goodbye” (BBC Radio 4, 2013). O primeiro movimento dramático é claro: Milly enfrenta um tratamento agressivo e tenta conciliar franqueza e autopreservação, enquanto Jess percebe que sua própria alegria — a possibilidade de uma gravidez — pode soar inadequada ao lado da dor da amiga. Hardwicke filma esse descompasso sem pressa, deixando que uma visita ao hospital, um jantar, uma festa de aniversário ou uma ida ao trabalho revelem fraturas que nem sempre ganham nome.
O conflito central se define na balança entre o direito à vulnerabilidade e o dever de cuidar. Milly precisa ser amparada e, ao mesmo tempo, preservar a autonomia que a definiu por tantos anos; Jess deseja estar presente sem abrir mão de sonhos longamente adiados. A partir dessa tensão, a narrativa aciona consequências muito concretas: mentiras por economia emocional, excessos para provar vitalidade, ciúmes por atenção alheia, culpas que se acumulam por não dizer o necessário na hora certa. Cada gesto aceita uma leitura dupla — coragem e fuga — e o roteiro se interessa por como essa ambiguidade se manifesta no cotidiano.
Toni Collette interpreta Milly com energia que se quebra e se recompõe em cena, fazendo caber numa mesma sequência a piada autodefensiva e a exaustão que pede silêncio. O filme observa a personagem em situações públicas e privadas, expondo a distância entre a persona social e o corpo em tratamento, e encontrando nas contradições o retrato de alguém que luta para permanecer reconhecível para si e para os outros. Drew Barrymore, por sua vez, oferece a Jess um contraponto de calma e firmeza. Quando a amiga exige companhia incondicional, ela tenta conciliar presença com limites, uma tarefa que às vezes exige dizer “não” a quem atravessa o pior período.
A história encontra peso específico nas relações secundárias. Dominic Cooper, como o marido de Milly, sustenta a dimensão conjugal do colapso: a intimidade marcada por medo, desejo rarefeito, acordos refeitos sob prazos que não foram escolhidos. Paddy Considine, parceiro de Jess, vive o dilema do companheiro que apoia uma amizade que muitas vezes o deixa em segundo plano, e cujos planos de família sofrem interferência de uma crise que não é diretamente sua. Jacqueline Bisset, como a mãe de Milly, representa a geração que aprendeu a enfrentar problemas varrendo a dor para baixo do tapete e precisa reaprender a cuidar sem reduzir a filha ao diagnóstico. Esses vetores ampliam o mapa afetivo do filme e demonstram que nenhum drama íntimo se sustenta isolado.
Hardwicke mantém a câmera próxima dos rostos e das mãos, interessada no que se decide em corredores, táxis, cozinhas e consultórios. Não há pressa para transformar cada virada em discurso; há, antes, a tentativa de registrar o custo de transitar entre papéis que se chocam. Quando a narrativa se permite o humor, ele funciona como instrumento de sobrevivência, não como alívio artificial. Uma piada pode falhar, uma festa pode dar errado, um presente pode chegar no momento inadequado, e essas falhas humanizam personagens que jamais são elevadas a símbolos.
O filme também se compromete com o olhar sobre o corpo doente sem transformar dor em espetáculo. A experiência do tratamento aparece em etapas: consultas, procedimentos, recaídas e as consequências emocionais e sociais de hábitos que precisam ser abandonados ou incorporados. Milly, acostumada a liderar, precisa aceitar ajuda; Jess, acostumada a ceder, precisa defender fronteiras. Esse embaralhamento de papéis empurra ambas a um território desconhecido, onde boas intenções não bastam e onde a honestidade pode ferir mais do que proteger. Ainda assim, é por meio dela que as duas conseguem renegociar a amizade.
O texto não trata gravidez e doença como polos antagônicos programados para disputar protagonismo. Ao contrário, a possível chegada de uma nova vida interfere na lógica do cuidado, seja pela alegria incontornável, seja pelos ciúmes involuntários, seja pelo medo de perder terreno justo quando tudo parece prestes a ruir. A narrativa, então, testa a solidariedade em sua forma mais cotidiana: buscar alguém na escola, dormir em uma poltrona desconfortável, dividir uma informação difícil, aceitar uma recaída sem transformar o erro em identidade permanente. São pequenas ações que, acumuladas, desenham o retrato de uma amizade adulta.
Há, ainda, a dimensão social que o filme não subestima: trabalho interrompido, dinheiro curto, expectativas dos que cercam e opinam. A história reconhece que o entorno cobra positividade, disciplina e decoro, mesmo quando nenhum desses itens está disponível. Milly e Jess navegam nesse mar de cobranças contraditórias, e o filme as acompanha sem atalho edificante. Quando o laço parece esgarçar, o roteiro não precipita reconciliações mágicas; prefere apostar em atos calculados, telefonemas necessários, conversas em que cada uma cede um pouco para que a outra volte a caber no espaço comum.
Sem spoiler do desfecho, resta apontar o que fica enquanto as decisões recaem sobre quem pode tomá-las. O que se vê é o movimento de duas pessoas que aprendem a dizer o que precisam, mesmo quando a frase ameaça o acordo tácito que as sustentava. A amizade, aqui, não é idealizada; é um trabalho contínuo de presença e de cuidado, com revezamentos, omissões, retornos e pedidos de desculpa. “Já Estou com Saudades” atinge esse lugar com atenção e firmeza, lembrando que seguir junto implica negociar a cada etapa o que é possível oferecer e o que é justo pedir. E que, nos dias mais duros, essa negociação pode ser a única coisa à mão.
★★★★★★★★★★
 
 




 
                                 
                                 
                                