A violência no Brasil dispõe de uma ampla rede de vasos comunicantes desde sempre. O jogo do bicho jamais teria chegado tão longe sem a ajuda muito bem-remunerada de agentes da lei, vira e mexe flagrados em conversas risonhas nas quais combinam a divisão do butim resultante da apreensão de um carregamento de drogas, ou mesmo facilitando a ação de mandachuvas do crime organizado visando, por evidente, à aposentadoria que a carreira no serviço público não pode oferecer. Dessa raiz envenenada surgiram ramos que se alastraram sem controle, colocando em risco os acordos de cavalheiros da bandidagem com os seus pares de farda e distintivo, obrigando que se reconfigurasse todo o esquema de tempos em tempos. “Os Donos do Jogo” arranha o tema, preferindo ater-se às disputas por território entre dois clãs fictícios de gângsteres tupiniquins, os Fernandez e os Moraes. Concebida e dirigida por Heitor Dhalia, a nova série brasileira lançada pela Netflix tenta dar algumas respostas para o alcance orgânico das atividades da máfia genuinamente nacional, gênero de ilicitude tida por mais suave, tanto que recebe da lei a deferência de ser chamada de contravenção. Mas não vai além da espuma.
Por uma dessas ironias do destino, “Os Donos do Jogo” estreia menos de 24 horas depois da megaoperação no Complexo da Penha que terminou com cerca de 130 mortos em circunstâncias suspeitas, para dizer o mínimo. Nem tão longe dali, em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, Jefferson Moraes, o Profeta, quer provar para o pai, Nélio, que pode estender o negócio de exploração de máquinas caça-níqueis até a capital, já sob o controle férreo de Galego Fernandez. A festa de casamento de Suzana, uma das herdeiras do império da jogatina carioca, e Búfalo, um ex-lutador de MMA que ascende ao primeiro escalão com a doença do sogro, Jorge, serve de oportunidade para que o caçula dos Moraes consiga acesso ao mundinho hermético dos poderosos Fernandez, de quem aspira a ser rival. A excelência da técnica, com a montagem de João Barbalho e os cenários de Dany Espinelli, abrandam inconsistências narrativas e a sensação de déjà-vu do argumento, explorado com maestria por Fellipe Awi no documentário “Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho” (2023), disponível no Globoplay. A unidade do elenco é, sem dúvida, o ponto alto ao longo dos oito capítulos; na pele de Profeta, André Lamoglia dá a adequada dimensão da psicopatia do personagem central, enquanto Juliana Paes faz de Leila Fernandez uma mulher fatal, mas atormentada — e não por acaso, a melhor subtrama diz respeito a uma ligação secreta dos dois. Lamentavelmente, na ficção e na vida como ela é, tudo é encarado como mais um dos moinhos de vento contra os quais não adianta lutar. E o Carnaval não tarda a nos entorpecer mais um pouquinho.
Série: Os Donos do Jogo
Criação: Heitor Dhalia, Bernardo Barcellos e Bruno Passeri
Direção: Heitor Dhalia
Ano: 2025
Gêneros: Crime, drama
Nota: 7/10


