Prepare-se: chegou à Netflix o suspense mais elegante e perigoso do ano Divulgação / Nine Hours

Prepare-se: chegou à Netflix o suspense mais elegante e perigoso do ano

Um homem afunda quando insiste em acreditar que o destino lhe deve algo. Lord Doyle (Colin Farrell), esse aristocrata improvisado que vaga por Macau como quem tenta convencer o mundo e a si mesmo de que continua no jogo, é exatamente o tipo de personagem que Hollywood fingiu superar. Ainda assim, aqui está ele, filmado com um verniz estético encantador o suficiente para nos distrair do fato incômodo: Doyle não persegue o dinheiro, persegue a fantasia de que, a cada carta virada, a sua existência pode recuperar algum sentido. Não há virtude nisso, há desespero. E talvez seja essa a sinceridade mais brutal do filme de Edward Berger: não existe glamour no vício, apenas a ilusão brilhante de um abismo bem iluminado.

Macau funciona como uma miragem concreta. Seus cassinos com paredes que parecem respirar neón exalam desejos alheios, enquanto Doyle tenta reviver o único instante em que se sentiu vivo: o momento da aposta. Berger percebe o potencial sedutor dessa ambientação e investe todos os holofotes nesse espetáculo da perdição. Porém, enquanto o diretor se diverte pendurando lâmpadas coloridas no caos, a narrativa vaga como Doyle, com um mapa rasgado e nenhuma real intenção de encontrar o caminho de volta.

Nada em Doyle é confiável: nem o nome, nem a postura de dândi decadente, muito menos o charme com que tenta disfarçar seus golpes mal ensaiados. A escolha de fazê-lo insistir no baccarat, jogo em que nenhuma habilidade pesa mais que o acaso, denuncia sua completa rendição ao destino, ou sua negação em assumir responsabilidade. Ele joga porque não sabe mais quem é quando não está jogando. Lord Doyle não acredita em si mesmo, mas acredita absurdamente no futuro improvável. Eis o paradoxo do viciado: toda desgraça é passageira enquanto ainda resta uma mesa aberta.

O filme flerta com o sobrenatural como quem teme olhar demais, recua antes de nos dar o prazer de um mergulho pleno. Há espectros em cena, mas eles parecem existir mais como um lembrete de que o roteiro não sabe o que fazer com suas próprias metáforas. A promessa de algo místico paira no ar, porém nunca assume forma, como se Berger tivesse receio de que a fantasia afastasse o público médio. O resultado é uma hesitação constante: uma história que quer parecer ousada, mas permanece refém do receio de arriscar.

Apesar desse receio, alguns personagens parecem resistir. Dao Ming, por exemplo, enxerga em Doyle não um homem, mas um labirinto de escolhas erradas. Ela não o salva — apenas oferece companhia no inferno. Já a investigadora interpretada por Tilda Swinton surge como a personificação da consequência: elegante, afiada, sem paciência para o teatro do arrependimento masculino. Ela não caça Doyle, caça a verdade que ele finge esquecer. Mas mesmo figuras tão fortes são convocadas apenas para empurrar a trama adiante, sem tempo para respirar em sua complexidade.

A câmera, por sua vez, faz o contrário: respira demais. Berger se encanta com cada plano ao ponto de comprometer o que realmente importa. Há beleza, mas há vaidade. A forma, aqui, se alimenta da substância até deixá-la raquítica. E é curioso perceber como essa escolha estética dialoga com o próprio protagonista: Doyle também tenta ocultar sua ruína com elegância. O filme e seu personagem partilham o mesmo vício, a necessidade de parecer mais interessantes do que realmente são.

Colin Farrell entrega intensidade, ainda que cerceada por diretrizes que não confiam na sutileza. Seu Doyle é um sujeito que grita com o olhar, mas a direção insiste em traduzir aquilo que o silêncio já dizia com perfeição. Talvez Berger tenha pressa em explicar o que poderia permanecer ambíguo. Talvez ele esteja, como Doyle, preocupado demais com o público do outro lado da mesa, esse que, se não receber respostas rápidas, levanta e vai embora.

Mas há um momento revelador nessa balada trágica: Macau não é apenas cenário; é cúmplice do desastre. Cada chuva insistente, cada reflexo tremido, tudo conspira para lembrar Doyle de que o acaso não é romântico. O acaso é uma entidade que não se importa com o nosso charme. As luzes piscam não como convite, mas como aviso: “Você continua aqui porque não sabe perder”.

E o filme não sabe. Ele quer ser discussão filosófica sobre azar e identidade, mas também quer ser entretenimento digestível. Quer o aplauso das massas e o reconhecimento dos críticos. Quer a ousadia sem bancar o risco. A mesa está posta para uma tragédia sublime, mas o roteiro aceita o conforto de um desfecho “aceitável”. E quando a arte aceita o mínimo, vira produto.

Ainda assim, negar completamente a sedução da experiência seria mentira. Há algo hipnótico nesse mergulho em falsa nobreza. Talvez porque todos nós, em alguma medida, entendemos esse impulso de jogar mais uma vez, mesmo depois de perder tudo. O cinema adora pecadores que acreditam merecer redenção. Doyle não merece nenhuma. E talvez seja justamente aí que ele se torna memorável: sua fé ridícula no improvável é o retrato mais honesto do que chamamos de esperança.

Quando as cartas caem e o silêncio pesa, percebemos: não assistimos a uma história sobre vício, mas sobre vaidade. Sobre o esforço desesperado para continuar acreditando que existe um grande momento reservado para nós logo ali, na próxima aposta. Doyle não quer vencer o jogo. Ele quer provar que ainda pode ser alguém digno de ser visto. Macau observa, indiferente, e brilha ainda mais com o brilho do seu fracasso.

Poderia ser um épico sobre a ruína humana, mas permanece um romance casual com a estética. Mesmo assim, provoca uma pergunta que persiste quando saímos da sala:
quantas vezes uma pessoa erra até aceitar que a sorte nunca esteve do seu lado?

Talvez a verdadeira tragédia seja admitir que não há número secreto, nem carta salvadora, nem milagre escondido no baralho. Apenas a ilusão de que a próxima aposta pode, enfim, apagar tudo o que não queremos lembrar.

Filme: Balada de um Jogador
Diretor: Edward Berger
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★