Desde tenra idade todos sabemos que vamos morrer. A finitude é a única certeza que nos acompanha, do berço à cova, e, no entanto, poucos lidam bem com isso. Quando morre alguém que amamos, resta um vazio do qual lembramos todo santo dia, ainda que aos poucos a dor arrefeça. O luto é uma zona cinzenta entre o mundo dos vivos e o outro, território rico de sentimentos e possibilidades em que podem estar as respostas a que os que ficam se lançam numa busca doida e às vezes perigosa.
À medida que os anos correm, os ânimos serenam, os fatos se reorganizam e formaliza-se uma distância grande o suficiente para entender o que antes era só caos. Amadurecendo, apartamos o fundamental do supérfluo, o verdadeiro do ilusório. Aprendemos que certas dores traduzem-se em sabedoria e que ausências têm o condão de também ser autoconhecimento. O que hoje soa como perda, amanhã talvez mostre a força de uma libertação. O tempo não apenas cura, mas oferece o repertório necessário para que se enxergue algum sentido nas vicissitudes. Iluminações não chegam para os apressados, acudindo os pacientes e os que meditam.
Aceitar as mudanças é um gesto de sabedoria. Resistir ao novo é acorrentar-se ao passado, deixando fugir as oportunidades do presente. Embora muitas vezes doloroso, mudar abre espaço para a renovação de ideias e o crescimento pessoal, e ao aceitar o fluxo natural da vida, encontramos a paz salvífica naqueles momentos de desespero. Em várias circunstâncias, a vida exige que nos adaptemos rápido, e é através dessas metamorfoses que desbravamos nossos ângulos mais obscuros. Trocando em miúdos, crescer dói, mas vale a pena.
Na lista abaixo constam cinco filmes que levam-nos a questionar todas as estúpidas certezas que vamos acumulando no decorrer de uma jornada excessivamente longa ou breve como um sopro, mas sempre cheia de lições. São histórias que alcançam ambos os públicos: os que não admitem ser derrotados pela realidade, lutam e perdem e para os que percebem logo que, para se atravessar o planeta, há que se dar o passo número um. Cada alma sob o sol é um universo mágico e misterioso.
Scott Yamano / NetflixO esporte é uma metáfora perfeita para se discorrer a respeito da finitude, primeiro da glória, depois da própria natureza humana. Em “Arremessando Alto”, Jeremiah Zagar une esses dois elos, o do jogador consciencioso, sabedor de suas imperfeições, mas que já não pode mais fazer nada por sua vida no limite das quatro linhas porque seu tempo passou. Essas quatro linhas, são, no caso, as que definem as dimensões da quadra de basquete, que disputa com o futebol americano e o beisebol a preferência do torcedor nos Estados Unidos; esse jogador, ou melhor, ex-jogador, Stanley Sugarman, que usara o talento e a paciência que foi exercitando ao longo dos anos entre um garrafão e outro para revelar ases da bola como ele fora. Sugarman ganha de Rex Merrick, o cartola do Philadelphia 76ers interpretado por Robert Duvall, a grande chance de sua vida: depois de anos na ponte aérea, morando em hotéis — hotéis cinco estrelas, mas hotéis —, perdendo os aniversários da filha, personagem de Jordan Elizabeth Hull, desgastando o casamento com Teresa, a T, de Queen Latifah, o olheiro, talvez a atuação mais convincente de Adam Sandler, vai se tornar o técnico da equipe. Uma reviravolta, no entanto, faz com que seus planos escorreram por entre seus dedos instáveis devido a um acidente fora de quadra do qual nunca se recuperou por inteiro e ele volte a ter de rodar o mundo à procura de titãs da bola prontos a serem mostrados às plateias de todo o globo. O carisma de Hernangómez e Sandler, nessa ordem, ambos apaixonados por basquete cada qual vibrando no seu próprio diapasão, mas coesos e absolutamente convictos do que estão fazendo no filme, é o que garante a excelente performance de “Arremessando Alto”, um dos melhores filmes de esporte da última safra.
Allen Fraser / NetflixTodos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, uma pessoa com mobilidade reduzida. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal, em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.
Divulgação / NetflixPor mais que a melancolia de “Se Algo Acontecer… Te Amo” não deixe transparecer, o casal que protagoniza esse curta de animação já foi muito feliz algum dia. Reconforta saber que tentam se reencontrar, mas a dor de ter perdido a filha da forma como tudo aconteceu os assola. Ao realizar a viagem rumo à vida que tinham até que a tragédia os colhesse, têm uma ideia de como podem voltar não aos bons tempos de antes — o antes está morto —, mas, pelo menos, resgatar o sentimento que os conduziu até ali. A técnica empregada na produção, estreia dos diretores Will McCormack e Michael Govier, é primorosa. Com desenhos feitos à mão, o filme torna-se uma verdadeira relíquia em meio a tantas invencionices da tecnologia, e a força da mensagem se intensifica. A narrativa se caracteriza por manter passado e presente juntos, suscitando a ideia da necessidade de os encarar dessa forma a fim de que a trama faça sentido. Os protagonistas são acompanhados por sombras, como que a atormentá-los, numa alusão à força das lembranças, capazes de interferências severas na vida dos indivíduos: a experiência de cada um é regida também pelas memórias que temos acerca dos mais diversos eventos pelos quais passamos. A começar do nome, “Se Algo Acontecer… Te Amo” é um conselho a nos rememorar a efemeridade da vida. E que é sempre possível — e necessário — dar às lembranças seu verdadeiro peso.
Divulgação / NetflixComo quase todo mundo, Radha Blank passara boa parte da vida seguindo os conselhos bem-intencionados de parentes, amigos, namorados, gente muito interessada no seu bem, até que cansou de tanto altruísmo à sua volta. Como sua personagem em “The Forty-year-old Version”, algo como “a versão dos quarenta”, em tradução literal, Radha aproveita a chegada à meia-idade para se libertar de alguns grilhões a que ela mesma se acorrentou. Rodado em 2020, o filme, confidência autobiográfica de uma mulher à procura do tempo perdido, já não mais em flor, mas com muito pela frente, é notável pela coragem da protagonista em arrostar fantasmas de tantos anos, mas que ainda estavam perigosamente à solta — e iriam permanecer assim, não fosse essa vontade incontornável de tirar os esqueletos do armário de uma vez por todas. “The Forty-year-old Version” é tão confessional que Radha continua a ser Radha. Na pele de uma dramaturga que foi fracassando ao longo dos anos, mencionada numa lista das trinta pessoas que poderiam chegar lá antes dos trinta anos, ela hoje está a três meses dos quarenta, dando aulas para uma dezena de alunos pobres do ensino médio no Harlem, um subdistrito de Manhattan antes degradado, mas que agora conta com investimentos maciços do mercado imobiliário numa Nova York que descobre a maravilha da gentrificação. Sua carreira está completamente estagnada, ela sofre um bloqueio criativo crônico — na verdade, ela sequer se preocupa em tentar escrever, desde que sobreviva —, mas não chega a ser desgraçadamente infeliz. Pleno de um humor sardônico, surpreendentemente revigorante, “The Forty-year-old Version” é de longe o melhor filme para uma faixa etária até há muito pouco desprezada pelo cinema, ou por já não contar com toda a graça de rapazes e moças de (no máximo) 25 anos, mas tampouco poder se afirmar no fim da história.
Divulgação / NetflixDosar o teor de drama, de modo a não permitir que a trama pareça inconsequente, sem deixá-la se transformar numa ode ao fim do mundo, injustificadamente fatalista e, por conseguinte, pouco verossímil, é uma equação complexa, cuja resolução demanda sensibilidade. Passar por cima do bom senso em nome da emoção não se prova uma boa ideia. Daí se admitir o fenômeno por trás de “100 Metros”, em que o diretor espanhol Marcel Barrena transforma a esclerose múltipla do protagonista na própria personagem mais importante do filme de 2016. Coestrelando o longa de Barrena, Dani Rovira é um intérprete sagaz o bastante para compreender os momentos voltados integralmente a Ramón Arroyo e as passagens em que admiti-lo como um homem comum, cuja saúde encontra-se em perfeito estado e que não se esfacela devido a uma enfermidade que o consome gradual, silenciosa e constantemente, não faz sentido. Tomando a morte nos braços numa dança em que calcula cada passo diligentemente ou correndo contra o relógio, para assumir o trocadilho, Rovira, amparando-se no roteiro preciso de Barrena, capta a essência do protagonista, alvejado de súbito, sem que esperasse — como todo mundo, aliás —, por uma doença que o empurra para o lugar mais baixo e mais obscuro de si mesmo. A partir do diagnóstico, se configura para Arroyo o desafio de viver com a nova limitação e inverter outra vez os papéis. Se para o personagem de Rovira, a esclerose parecia ganhar uma centralidade que não merece, é chegada a hora de reaver sua vida e seguir com os planos de concluir o Ironman, uma das competições esportivas mais famosas (e exaustivas) do mundo. Em sua estreia num trabalho de maior envergadura, Marcel Barrena mostra-se pronto para dar a largada rumo a uma carreira sólida, em que poderá desenvolver com o mesmo esmero novas histórias e personagens, como o fez em “100 Metros”, que em mãos menos escrupulosas certamente teria se tornado uma xaropada enjoativa e intragável.

