Ser livre não é um privilégio, mas um eterno confronto com o peso e as implicações do estar no mundo. A liberdade absoluta seria um flagelo, um vale-tudo que autorizaria gestos hediondos em nome do riso bestial e do gozo rápido durante uma vida curta de solidão, sordidez e violência. O homem tenta esquivar-se de seu maldito direito à inescapável autonomia procurando exaustivamente por doutrinas, concentrando-se em rituais, fazendo-se e refazendo-se conforme o espaço que ocupa.
Isso implica, por consequência, estar sempre diante da necessidade de escolher, agir e responder por suas decisões — mesmo nas ocasiões em que não escolhe nem age.
Nesse movimento, valores se perdem, certezas viram pó. Movido por medo, rancor ou ódios, há quem não distinga justiça de vingança, fé de dominação, moralidade de hipocrisia. Florescem as ideologias totalitárias, petrificam-se as emoções, a dúvida transforma-se em crime. Preconceitos enganam ao vender a ideia de pureza como uma promessa de felicidade, exigindo em troca subserviência incondicional e mudez da razão. As falsas verdades distorcem e redefinem a natureza das coisas, e opiniões são tidas por armas, de que se lança mão contra tudo que é diferente.
A lógica do consumo e da produtividade colabora para que nos sintamos mais e mais desumanizados, peças substituíveis numa engrenagem que sobrevaloriza resultados e desdenha vidas. Fomos desaprendendo a reconhecermo-nos no outro. A sensibilidade cedeu lugar à pressa, e a ética foi arrastada pelos demônios da competição. O mundo avança sob a perspectiva tecnológica, enquanto vai ladeira abaixo no que já apresentou de admiravelmente belo. Nesta lista figuram sete produções no catálogo da Netflix que questionam esse novo homem, isolado, melancólico, preso em seu universo distante. São filmes que, de uma maneira ou de outra, fomentam perguntas sobre a instável condição humana. E perguntar é a primeira atitude para que se deixe a letargia e volte-se à realidade.
Allyson Riggs / NetflixNum mundo degenerado, vítima de uma incessante contaminação por pensamentos teratológicos de todas as categorias, de valores apodrecidos pela influência maléfica de quem deveria dar o exemplo, ainda cabe falar-se em moralidade, decoro, decência, ou isso é, agora mais do que nunca, coisa para sonhadores, ingênuos, palermas? Essa é uma das perguntas que Benjamin Caron levanta em “A Noite Sempre Chega”, um neo-noir com muito da estética do gênero que pega o espectador pelo contrapé. Caron inspira-se em alguns dos excelentes trabalhos de Quentin Tarantino, David Fincher, James Foley e Martin Scorsese, mas trata de imprimir personalidade a seu longa por meio de uma anti-heroína que luta com todas as suas forças para escapar da perdição, mas que também só precisa do motivo mais banal para jogar-se com tudo na cova dos leões. Adaptado do livro homônimo lançado pelo escritor e músico Willy Vlautin em 2021, o roteiro de Sarah Conradt concentra em Lynette, a personagem central interpretada por Vanessa Kirby, reflexões sobre vulnerabilidade social, violência, desagregação familiar e o pouco caso das autoridades, tecendo uma história que foge ao óbvio. Os expedientes a que Caron recorre para sustentar a redenção de sua anti-heroína, seguida de uma bela passagem levada por Lynette e a mãe, interpretada com vigor por Jennifer Jason Leigh, vêm como o sol, ansioso por brilhar ao cabo de uma longa e diabólica madrugada.
JoJo Whilden / NetflixOs incontáveis golpes com que nos assalta o destino vêm em boa parte sob a forma de apuros de saúde, sem a qual pouco se pode fazer e contra os quais é mister lutar. Ganhar a vida com o suor do próprio rosto, com trabalho, honesto, digno e capaz de absorver-nos de tal maneira que esquecemos das questões fundamentais e inadiáveis que nos atormentam em segredo, é um princípio imperioso pelo qual se guia toda mulher e todo homem que se pretende admirável, nem que seja para si mesmo. No fundo, é disso que se trata “O Enfermeiro da Noite”, a história de um assassino em série devotado, que foi deixando um rastro de mortes ao longo de mais de sete anos, mas principalmente o tributo a uma mulher singular. O diretor Tobias Lindholm é hábil em manipular o foco do espectador para uma direção e, aos poucos, fazê-lo notar a grande personagem que deixa em segundo plano e ocupa o centro do roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro homônimo de Charles Graeber sobre um evento melancolicamente verídico.
Glen Wilson / NetflixO Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, caos, tragédia, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se absorve das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.
Divulgação / NetflixDirigido por Charlie Kaufman, “Estou Pensando em Acabar com Tudo” é uma obra desconcertante que mistura drama psicológico, romance e horror existencial. O filme acompanha uma jovem que acompanha seu namorado em uma viagem para conhecer seus pais, mas a narrativa rapidamente se torna uma exploração da identidade e da memória e uma distorção do real. Kaufman subverte expectativas, transformando uma história aparentemente banal em um mergulho perturbador na mente humana. Jesse Plemons e Jessie Buckley entregam performances intensas, com Buckley transmitindo vulnerabilidade e confusão emocional de maneira impressionante. O roteiro desafia a linearidade temporal, mesclando lembranças, fantasias e realidades alternativas, mantendo o espectador em constante tensão. A cinematografia de Łukasz Żal reforça o clima onírico e claustrofóbico, usando espaços vazios e cores frias para intensificar o desconforto. A trilha sonora, pontuada por canções melancólicas, contrasta com momentos de absurdo e surrealismo, ampliando o caráter psicológico da narrativa. A obra questiona temas como identidade, arrependimento e o medo da solidão, convidando à reflexão profunda. O ritmo lento e a estrutura fragmentada podem desafiar o público, mas reforçam o caráter experimental do filme. O desfecho ambíguo deixa uma sensação duradoura de inquietação e perplexidade. Kaufman cria um filme que é tanto um pesadelo psicológico quanto uma meditação filosófica sobre a existência humana.
Divulgação / NetflixUma das antenas mais sensíveis da humanidade, o cinema produz filmes que traduzem tão bem o zeitgeist, o espírito do tempo em que são gerados, que até parecem surgir por meio de algum fenômeno entre o espontâneo e o mágico, pairando acima de nossas cabeças como se apenas à espera de alguma oportunidade para se materializar. Prenhes de uma ideia central aparentemente inconcebível tomando-se a perspectiva cênica, essas histórias gritam a um diretor que lhe enxergue o potencial revolucionário de dizer as coisas mais óbvias de uma maneira para a qual ninguém atentara até o momento. O conceito original de “O Poço” por si só legitimar o belo desempenho do filme de Galder Gaztelu-Urrutia no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em setembro de 2019, ano em que foi lançado — embora tenha sido consagrado sob uma classificação cheia de ocultas idiossincrasias (mas nem tanto), sugestivamente denominada Midnight Audience Award, Prêmio da Audiência da Meia-Noite. A narrativa que Gaztelu-Urrutia conduz com mão firme, como o tacho de uma iguaria muito delicada que exige que se tenha a massa em evolução constante, transcorre quase inteiramente dentro de um dispositivo arquitetônico meio futurista, meio camusiano. Longe de requentar ideias de outros filmes, congêneres ou semelhantes, o que o diretor faz é burilar sua obra-prima como um fino carpinteiro, até chegar à perfeição de uma alegoria inteligente e ousada, que tanto pode se referir à sociedade de um país qualquer da América Latina, desigual e injusto, como sobre o próprio gênero humano, onde quer que esteja. É da natureza mesma do homem subjugar seu próximo e tirar dele todas as vantagens que encontre. Até um naco de carne.
Divulgação / Universal PicturesA vida em sociedade se nos apresenta como um desafio a ser vencido todos os dias, porque, além de todo dia ter seus próprios obstáculos e as alegrias raras que valem por toda a angústia de existir, socorre-nos esse poder, o poder de simplesmente passar por cima de quem preferiria que não estivéssemos aqui. Depois de uma longa carreira diante das câmeras em filmes não exatamente densos, Jordan Peele se resolveu a dar vida às histórias que merecem ser contadas, e já não era sem tempo. Confrontando um dos temas mais urgentes do nosso tempo, “Corra!” tem o condão de arrastar o espectador para o centro de uma narrativa perturbadoramente sedutora, mas também exigente, que demanda dele atenção e sensibilidade em igual medida. Peele sabe muito bem do que está falando: o recrudescimento do pensamento racialista após uma brevíssima trégua, abordada em seu roteiro algumas vezes, vem a lume sob a forma mais delirantemente agressiva, momento em que o diretor-roteirista aproveita para ir mais fundo na discussão que torna seu trabalho tão relevante.
Divulgação / NetflixO inferno não são só os outros, mas libertar o diabo em nós às vezes ajuda. Todos experimentamos, em um ou outro momento, a sensação de não conseguirmos nos ajustar à vida como ela é, à vida real. Ter um emprego do qual não se gosta, mas imprescindível para se manter; não ter de viver na rua, ainda que a casa em que se mora esteja longe do palacete com que sempre se sonhou e, por uma grande injustiça — ou desalinhamento dos astros, ou carma —, nunca se pôde comprar; estar a anos-luz das festas badaladas de celebridades que muitas vezes nem parecem reais de tão perfeitas: assim se constitui a jornada na Terra para 99,9% das pessoas. A anti-heroína de “Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo” pertence a esse grupo majoritário. Ruth Kimke parecia inclinada a continuar imersa no mar de mediocridade que inunda sua vida, até que um evento muito particular a impele a tomar uma atitude. Sua casa é roubada, o que em verdade não representaria um problema fundamental, visto que não esconde nenhum tesouro. Ou melhor, ela tinha, sim, uma relíquia, que até poderia render uns bons trocados, irrisórios, se comparados ao valor sentimental que encerram. Além do laptop e de sua munição de remédios controlados, a auxiliar de enfermagem ficou sem uma baixela de prata, presente da avó já falecida. A busca de Ruth atrás dos bens que lhe surrupiaram adquire tons de genuína odisseia nesta primeira direção do ator Macon Blair. Ela, como uma típica mocinha dos velhos folhetins da França do século 19, recorre a quem tem o poder e a autoridade para ajudá-la, mas prefere se omitir.

