O capitalismo em sua forma mais pura: a comédia de Scorsese que expõe o império do excesso, no Prime Video Mary Cybulski / Paramount Pictures

O capitalismo em sua forma mais pura: a comédia de Scorsese que expõe o império do excesso, no Prime Video

Martin Scorsese, mais do que qualquer outro cineasta norte-americano, entende o capitalismo como uma religião sem transcendência, cujo altar é o próprio corpo em êxtase. Em “O Lobo de Wall Street”, o diretor abandona a culpa católica que perpassava sua filmografia e entrega uma espécie de missa negra do mercado financeiro, uma celebração da ganância que não busca expiação, apenas permanência. O filme, baseado nas memórias de Jordan Belfort, não narra uma queda moral, mas o triunfo provisório de um sistema que já incorporou o pecado como motor de funcionamento.

Ao longo de três horas, Scorsese conduz uma narrativa tão acelerada quanto o metabolismo químico de seus personagens. O ritmo, que em outros contextos seria virtuosismo formal, aqui se converte em estratégia filosófica: não há tempo para pensar, apenas para desejar. O espectador é arrastado pela euforia de um mundo que não distingue prazer de lucro. A montagem frenética de Thelma Schoonmaker, a fotografia saturada de Rodrigo Prieto e o uso quase coreográfico do excesso, corpos, drogas, gritos, dinheiro, compõem uma experiência sensorial que replica a vertigem da especulação. Scorsese não denuncia o vício; ele o encena com precisão de quem compreende que a dependência é o próprio centro do capitalismo tardio.

Leonardo DiCaprio transforma Jordan Belfort num ícone ambíguo: simultaneamente repulsivo e fascinante. Sua performance não busca empatia, mas adesão temporária ao delírio. O ator capta algo essencial do espírito de época, a conversão da inteligência em instrumento de exploração. Jonah Hill, Margot Robbie e Matthew McConaughey completam um elenco que funciona como um coro dissonante, onde cada voz amplifica a insanidade coletiva. Nenhum deles é inocente, porque a inocência, no universo de “O Lobo de Wall Street”, é apenas ignorância de mercado.

O roteiro de Terence Winter compreende que o escândalo moral interessa menos do que a lógica da repetição. Belfort mente, engana e trapaceia, mas o que o filme expõe é a banalidade com que tudo se reitera: as festas, as drogas, as reuniões, as desculpas. O ciclo do excesso não conduz à destruição, e sim a uma forma de paralisia moral. Mesmo quando preso, o protagonista continua vendendo, agora a si mesmo, como produto de uma cultura que transforma a degradação em entretenimento. É nessa ironia que o filme atinge seu ponto mais cruel: o capitalismo não pune seus lobos; apenas os recicla.

Há quem interprete o filme como glorificação do vício e da riqueza. Mas o que Scorsese realiza é uma crítica implícita à nossa incapacidade de distinguir fascínio de reprovação. Ele não nos oferece distância moral, porque o próprio sistema já aboliu essa distância. Ao rir das cenas absurdas, como a luta de corpos intoxicados por quaaludes ou a ostentação histérica de iates e mulheres, o público participa do mesmo espetáculo que pretende condenar. O riso se torna sintoma: prova de que todos, em alguma medida, fomos educados para admirar o predador.

Scorsese não ensina, não moraliza, não aponta saídas. Ele ergue um espelho em alta velocidade e nos obriga a encarar o reflexo distorcido de uma sociedade que celebra o crime como virtude de mercado. A câmera, que antes seguia mafiosos com respeito trágico, agora corre atrás de corretores em transe, revelando que a violência urbana deu lugar à violência simbólica do capital. O gangster mudou de roupa, mas continua dominando as regras do jogo.

Fica a sensação de que o cinema encontrou sua própria parábola sobre a era da abundância: um espetáculo de descontrole embalado por discursos de motivação. “O Lobo de Wall Street” não é apenas uma sátira sobre um homem corrupto; é um diagnóstico sobre a elasticidade moral de um tempo em que tudo, inclusive o vício, pode ser vendido com sucesso. Scorsese entrega um filme que diverte enquanto corrói, ri enquanto sentencia, um espelho frenético de um sistema que transforma até o abismo em oportunidade de investimento.

Filme: O Lobo de Wall Street
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 2013
Gênero: Biografia/Comédia/Crime/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.