Eusébio — ou as lições de um bonsai que repousa sobre minha mesa de trabalho

Eusébio — ou as lições de um bonsai que repousa sobre minha mesa de trabalho

Tenho um bonsai em cima da minha mesa e é para ele que olho toda vez que exerço uma pausa entre uma linha escrita e uma linha pensada. Tenho angústias, como sói acontecer com pessoas da minha idade, da minha profissão, da minha condição estrangeira, da minha natureza. O bonsai não é angustiado: exala calma, sossego, inércia. É da sua natureza. É sua natureza. É natureza.

Angustia-me sobretudo pensar se o bonsai é feliz ou triste. Porque muitas vezes ele me parece um passarinho dentro da gaiola — e fico pensado se esse pequeno ser de vez em quando percebe que há um mundão bonito do outro lado da janela esbanjando permissão para que cresça livre e sorridente, raízes espaçosas sem o vaso, caule aumentando desamarrado, fosse ele solto no solo do jardim.

— Você está bem, Eusébio? — pergunto a ele.

Há muito deixou de ser muda, mas sempre será mudo o meu bonsai.

O nome dele é Eusébio porque quando o ganhei pensei logo em batizá-lo como alguém que já nasceu velho, sábio. Alguém que já nasceu resignado. Poderia ser Ambrósio? Poderia. Poderia ser Fulgêncio? Poderia. Poderia ser Tibério? Talvez. Eusébio é meu bonsai e respinga velhice precoce, traduz uma sabedoria inata. Fica ali, imóvel. Concentra-se no vazio. É zen, portanto. Concentra-se em não crescer. E justamente por isso concentra em si a potência do crescer, do ser.

Você pode achar que estou ficando louco, mas nos últimos dias plantei em mim uma ideia fixa: a de que Eusébio é quem me observa, olhando de volta principalmente quando eu estou entretido com minhas letrinhas e o tlequebatuque que é o tatibitate do meu barulhento teclado. Oito horas por dia Eusébio é condenado a ouvir uma triste sinfonia traste, afinal. Ele deve me odiar.

Quando me olha de lado, nesga de luz por entre suas folhas, o faz de modo vegetal. Eusébio não pisca, mas sua existência pesa. Ele me olha sabendo que o tempo passa diferente para ambos: para ele, cada ramo novo é uma revolução; para mim, apenas mais uma segunda-feira de outra das 52 semanas do ano de 2025.

Ganhei o bonsai logo nos dias em que me mudei para esta casa. Foi presente de um amigo ucraniano, imigrante como eu. Alguém que entende o ser forasteiro e toda a sina do não-pertencimento. Disse-me que era para dar sorte e que ele viver bem significava alguma coisa como sucesso no trabalho. Gosto de plantas mas tenho muita preguiça de qualquer papinho meio esotérico. E as coisas ficam piores quando vêm embaladas com discurso de autoajuda coach barato.

Fato é que Eusébio trouxe harmonia ao meu escritório. Não por ser um bonsai, mas por me fazer companhia. A melhor companhia é a que não atrapalha. Ele fica quietinho. Enquanto tem gente que fica tendo de limpar sujeira de cachorro ou pelo de gato, eu virei um pai de planta: tenho uma arvrinha de menos de 30 centímetros que fica me ignorando com elegância.

Ouvi dizer que bonsais não gostam de mudanças mas no ano passado decidi botá-lo em um vaso um pouco maior, dando um respiro para suas raízes um tanto atrofiadas e permitindo que ele crescesse um bocado. Não faça isso jamais, era o que me alertava um fórum on-line de jardineiros. Não troque o vaso do bonsai, não mexa em suas raízes: ele vai se revoltar e morrer por uma espécie de suicídio plantônico, advertiu-me a vizinha D.

Se o bonsai falasse ele iria corrigir a D.

— Seppuku, com honra. Ou, como vocês aí dizem, haraquiri.

Contrariei conselhos e, munido de pequenas ferramentas de jardinagem e um arroubo de teimosia masculina, fiz o replantio no ano passado.

Eusébio sorriu.

Penso até que agora está num vaso em que há espaço para seus sonhos.

Quando eu encerro meu expediente, apago a luz do escritório e deixo-o dormir, ele sonha que é uma árvore grande, dessas de verdade, com pássaros no galho e vento entre os brotos. Às vezes também pesadela: vê-se na Amazônia e um homem que parece o Ricardo Salles surge de oclinhos e motosserra gigante gritando “eu vou te matar”, “eu vou te matar”, “quero boi, quero boiada”, “você vai morreeeeeeeer!”. Aí ele acorda suando frio, até caem umas duas ou três minúsculas folhas. Fica aliviado que está ali, preso em uma cerâmica branca de escritório, protegidinho dentro de casa, nem frio passa porque tem aquecimento no inverno.

É um consolo lembrar que, mesmo que problemas persistam, alguns pesadelos ficaram para trás.

Eusébio já aceitou que a felicidade é um conceito relativo e estar vivo, mesmo em miniatura, já lhe parece bom o bastante. Ele reagiu bem ao transplante de vaso. Cresceu um pouquinho mais. Vejo-me nele: também fui tirado do meu solo de origem, plantado em outra terra. E sigo vivo. Cresci um pouquinho.

Com Eusébio confirmo que a felicidade reside nas folhas. Para ele, estes nacos verdes que seus galhos colecionam. Para mim, nas centenas de milhares do interior dos livros que me cercam com suas literaturas transatlânticas.

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.