Uma jovem stripper do Brooklyn conhece um rapaz russo, herdeiro de fortunas familiares, e os dois emendam noites, risos e promessas até um casamento impulsivo em Las Vegas. A euforia é breve. Pais milionários reagem com frieza, enviam emissários para desfazer a união e transformam a protagonista em um incômodo administrativo. A partir desse ponto, “Anora” passa a seguir uma disputa entre afeto e conveniência, em que cada gesto tem preço e cada palavra pode tornar-se prova.
Dirigido por Sean Baker e protagonizado por Mikey Madison e Mark Eydelshteyn, com participação de Yura Borisov entre os antagonistas de ocasião, o longa prefere observar de perto a respiração dos personagens em vez de impor sentenças morais. Madison conduz a protagonista com firmeza e leveza, alternando dureza de quem conhece a rua com fragilidades que aparecem nos silêncios. Eydelshteyn compõe o herdeiro como um garoto cheio de charme e pouca visão de futuro. Borisov ocupa o espaço do agente prático, mais afeito a resultados do que a promessas. A combinação funciona porque cria atritos reconhecíveis entre desejo, medo e pragmatismo.
A direção investe em cenas ágeis, câmera próxima e locações que parecem respiradas, sem verniz publicitário. O efeito é simples: lugares de trabalho não viram cartões-postais; hotéis e apartamentos não seduzem pelo acabamento; motoristas, seguranças e funcionários não são figurantes sem rosto. Quando o humor entra, nasce das situações, não de bordões. Quando o drama aperta, vem do cerco montado por decisões tomadas no impulso e por ligações telefônicas que jamais soam neutras. Há atenção a pequenos rituais de dinheiro contado, deslocamentos noturnos, regras que mudam conforme o status de quem pergunta. Essa dimensão cotidiana dá lastro ao romance apressado.
A montagem favorece continuidade e orientação espacial; o desenho das ações facilita a compreensão de onde cada personagem está e por que age daquela maneira. O filme evita pirotecnia visual e prioriza o olhar atento aos gestos e à linguagem corporal. A fotografia valoriza contrastes entre luz artificial e penumbra de ruas, entre brilho e cansaço, aproximando a narrativa de ambientes que normalmente permanecem invisíveis. A música não tenta conduzir respostas emocionais; serve de companhia para festas, deslocamentos e hesitações, sem empurrar o enredo para conclusões fáceis.
Mikey Madison confirma versatilidade ao moldar a protagonista como alguém que negocia a própria liberdade minuto a minuto. O carisma ajuda, mas o que sustenta o papel é a escuta: a personagem observa, calcula, erra, volta a negociar. Eydelshteyn oferece um contraponto quase infantil, sedutor pela promessa de fuga, mas incapaz de medir consequências. Borisov imprime presença seca, sem espalhafato. Essa triangulação permite que o filme transite entre comédia romântica desajustada e crônica social, sempre a partir de corpos em movimento, portas que se abrem por dinheiro e portas que se fecham por sobrenome.
Há virtudes claras. O retrato de trabalhadores do entretenimento adulto evita lamúria e voyeurismo. O humor nasce de equívocos humanos, não de humilhação. O roteiro entende que o casamento relâmpago não é apenas capricho: também pode ser tentativa de segurança, documento, oportunidade. Quando os mensageiros do clã bilionário entram em cena, o jogo de forças se torna mais nítido. A protagonista passa a negociar com pessoas treinadas para transformar afeto em planilha. Esse choque rende momentos de tensão e, sobretudo, revela que amor e status obedecem a lógicas incompatíveis.
Também há fragilidades. A sátira aos ultra-ricos por vezes escorrega para estereótipos, o que simplifica debates sobre classe e imigração. As mudanças de tom entre farsa e drama podem soar bruscas, especialmente no terço final, quando decisões jurídicas e familiares ganham peso. A duração alongada repete alguns ciclos de briga e reconciliação, o que dilui o avanço emocional de certos trechos. Em alguns momentos, a câmera insiste em acompanhar o caos de perto e perde oportunidades de deixar respirar situações que pediriam observação um pouco mais distante. Essas oscilações não anulam os acertos, mas aparecem com nitidez.
A direção, fiel ao interesse por personagens às margens do dinheiro fácil, aposta na dignidade de quem calcula cada passo. As cenas em clubes, motéis e residências mostram que proximidade física não significa acesso real. A atuação de Madison amarra o conjunto: a protagonista permanece dona da própria história, mesmo quando o enredo a empurra para um labirinto de contratos, carimbos e chantagens emocionais. Quando precisa pedir ajuda, pede. Quando decide recuar, recua. O filme observa essas escolhas sem moralismo, mantendo aberta a leitura sobre o que é vitória em contextos de desigualdade.
O componente romântico, ainda que impulsivo, nunca desaparece. Ele reaparece nas músicas que pontuam deslocamentos, nos presentes improvisados, em piadas privadas que indicam intimidade recente. Esse componente sustenta a empatia necessária para que a jornada não se reduza a uma disputa de documentos. Ao mesmo tempo, o roteiro não esconde que afetos podem ser utilizados como ferramenta de pressão. Os capangas educados, os advogados impacientes, os seguranças bem pagos formam um muro que fala baixo e decide alto. A protagonista aprende a decifrar esse idioma com velocidade, o que altera o curso das relações.
Quando a história se encaminha para decisões mais duras, o filme conserva atenção à rotina. Não há discurso de tribunal ou tirada salvadora. O que existe é gente tentando não perder o pouco controle que tem. Esse caminho reforça a impressão de que felicidade, para esses personagens, tem prazo curto e custo alto. A consequência é um retrato direto de mobilidade social como aposta de risco, em que avanços e tombos podem acontecer na mesma semana. A tela oferece uma pergunta incômoda: quem define o valor de um compromisso quando o dinheiro compra quase tudo, menos a paz depois da assinatura.
★★★★★★★★★★