A história de Mary Stuart sempre ocupou uma posição incômoda no imaginário político europeu. Rainha coroada ainda na infância, viúva aos dezoito e prisioneira durante quase duas décadas, sua trajetória foi moldada pela interseção entre poder e legitimidade, um tema que o cinema raramente trata com rigor. “Duas Rainhas”, filme de Josie Rourke, tenta reconstituir essa figura em meio a uma disputa de narrativas: de um lado, a rainha católica cercada por homens hostis; de outro, a mulher que ousou rivalizar com o mito consolidado de Elizabeth I. O problema central não é o interesse feminista da releitura, mas a falta de método histórico com que a diretora tenta conciliar documento e manifesto.
A produção parte do livro de John Guy, “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart”, mas transforma a pesquisa em alegoria contemporânea. O resultado é um híbrido: entre a fidelidade biográfica e o discurso político do presente. A narrativa introduz anacronismos estéticos e morais que, longe de ampliar o sentido da história, acabam dissolvendo a densidade do contexto. O uso de “colorblind casting”, por exemplo, não tem função interpretativa clara; serve antes como gesto simbólico, alinhado a um ideal de representatividade atual. Essa escolha desloca o espectador da lógica do século 16 para um campo moral moderno, onde a história se torna ilustração de valores, não campo de reflexão.
A atuação de Saoirse Ronan sustenta o filme quando o roteiro hesita. Sua Mary é uma mulher consciente da precariedade do próprio poder, tentando conciliar fé, desejo e sobrevivência num ambiente político dominado por traições. Margot Robbie, como Elizabeth, traduz o oposto: a racionalidade política que se sobrepõe à vontade pessoal. O breve encontro entre as duas, ainda que ficcional, sintetiza a tese da diretora: o confronto entre duas formas de poder feminino, uma guiada pela emoção e outra pela prudência. No entanto, essa dicotomia soa simplista diante da complexidade histórica do período, em que religião, gênero e soberania não se separavam com tanta clareza.
O texto de Beau Willimon tenta reproduzir o modelo de conflito psicológico que marcou “House of Cards”, mas o artifício político que funcionava em um drama moderno não se adapta à realeza do século 16. A retórica do roteiro é contemporânea demais: fala de autonomia e identidade em termos que ignoram as estruturas teológicas e jurídicas da época. O filme perde, assim, a oportunidade de examinar a questão essencial, o poder como forma de isolamento. Tanto Mary quanto Elizabeth governam em solidão, reféns de seus próprios símbolos, incapazes de agir sem trair as expectativas impostas pelo trono.
Há, contudo, uma virtude formal inegável. Josie Rourke dirige com precisão teatral, explorando o contraste entre os espaços abertos da Escócia e os interiores sombrios das cortes. A alternância entre amplitude e confinamento visualiza a tensão entre liberdade e dever que atravessa as duas rainhas. Essa dimensão cênica é o que mantém o filme coeso, mesmo quando o argumento se enfraquece sob o peso de sua agenda ideológica. É também o que permite perceber, por trás do discurso político, um questionamento mais profundo sobre o próprio sentido de reinar.
Historicamente, Mary Stuart foi uma figura ambígua, religiosa, mas pragmática; legitimista, mas disposta a alianças arriscadas. O filme simplifica essa ambiguidade ao transformá-la em mártir de uma causa que, no século 16, ainda não existia. A ideia de sororidade que permeia o roteiro projeta sobre o passado uma consciência social moderna, descolada da lógica dinástica e teológica que movia o poder europeu. Não se trata de exigir literalidade documental, mas de reconhecer que o anacronismo, quando mal administrado, substitui o pensamento pela tese.
O fracasso comercial do filme talvez se explique por essa dissonância entre forma e intenção. “Duas Rainhas” tenta ser simultaneamente tratado histórico e manifesto moral, mas carece de unidade intelectual. A ausência de um ponto de vista rigoroso torna o discurso político superficial e o drama humano difuso. O público não encontra nem a densidade do relato histórico nem a força emocional de uma tragédia. O resultado é um produto visualmente elegante, mas conceitualmente instável.
O mérito da direção está em reabrir o debate sobre como representamos o passado. Rourke propõe um olhar que rejeita o dogma da fidelidade e aposta na reinterpretação, um gesto legítimo, desde que assuma sua natureza especulativa. O problema é que Mary Queen of Scots quer simultaneamente reescrever a história e reivindicar autoridade sobre ela. Nesse impasse, o filme não erra por ousar, mas por hesitar entre a análise e a propaganda. E nesse ponto, talvez, Mary Stuart e o próprio cinema histórico compartilhem o mesmo destino: condenados a lutar pela legitimidade de uma coroa que já não pesa, mas ainda define.
★★★★★★★★★★