O filme que fez Hollywood sangrar — agora está na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O filme que fez Hollywood sangrar — agora está na Netflix

Duas repórteres perseguem pistas sobre agressões e assédios atribuídos a um produtor de cinema, enquanto tentam convencer testemunhas a falar com nome e sobrenome. Em “Ela Disse”, dirigido por Maria Schrader, Carey Mulligan e Zoe Kazan interpretam Megan Twohey e Jodi Kantor, jornalistas do “New York Times” que rastreiam pagamentos, acordos de confidencialidade e padrões de abuso associados a Harvey Weinstein. O filme adapta o livro “She Said”, assinado pelas repórteres, e foca a apuração: ouvir, verificar, registrar e publicar com base em evidências que resistam à pressão jurídica e à chantagem do medo.

A narrativa acompanha ligações interrompidas, viagens rápidas, reuniões com editoras e encontros discretos em cafés e hotéis. Nada parece espetacular: o suspense nasce de recusas reiteradas, do receio de perder empregos e da lembrança de episódios que muitas preferiram tentar esquecer. Schrader confia no drama de um gravador sobre a mesa, de um e-mail decisivo na madrugada, de um arquivo resgatado de uma pasta antiga. O movimento central está em construir confiança suficiente para que um relato privado se transforme em depoimento verificável, passo que exige tempo, tato e proteção institucional.

Mulligan compõe Megan como profissional direta, ciente do desgaste que o trabalho impõe à vida doméstica e às próprias emoções. Kazan dá a Jodi uma persistência afetuosa, capaz de esperar o silêncio terminar antes de formular a próxima pergunta. A parceria não se converte em disputa; funciona como revezamento. Quando uma encontra resistência, a outra tenta por outro caminho. Patricia Clarkson, como Rebecca Corbett, equilibra prudência e ímpeto; Andre Braugher, como Dean Baquet, sustenta a blindagem legal necessária a uma matéria que desafia gente rica, conectada e litigiosa.

Ex-funcionárias relatam convites, encontros e acordos que compraram silêncio. Acordos de confidencialidade aparecem como muros erguidos com linguagem jurídica. Agentes e departamentos de recursos humanos desviam queixas para trilhas que terminam em indenizações condicionadas a calar. O filme deixa claro o custo de romper contratos assinados sob pressão, inclusive o medo de retaliações e processos. Ao mesmo tempo, reconhece o direito de dizer não, quando reviver o passado parece insuportável naquele momento. A decisão de falar não vira prova de heroísmo automático; representa um cálculo íntimo de risco.

A encenação privilegia espaços de trabalho, quartos com brinquedos espalhados, corredores de hotel, escritórios com vidros e carpetes que abafam passos. A fotografia utiliza luz discreta e cores contidas, mantendo a atenção em rostos e objetos: um caderno, um crachá, um celular que vibra. A trilha permanece baixa, sustentando inquietação sem invadir. O som de teclas, portas e passos compõe a paisagem de um ofício que depende de concentração e rotina. Não há glamour; há cansaço, cuidado e pequenas vitórias que atravessam dias longos.

Quando uma fonte aceita conversar, a câmera permanece o tempo suficiente para que um desvio de olhar ou um tremor de mão tenha peso. Jennifer Ehle e Samantha Morton dão corpo a memórias difíceis, com falas que evitam espetáculo e preservam dignidade. Ashley Judd, como ela mesma, conecta a investigação ao debate público, lembrando que nomes conhecidos também pagam preço quando decidem romper o silêncio. Essas presenças formam um mosaico de tempos, carreiras e medos, salientando que o problema não se encerra em um nome famoso.

O filme observa o trabalho jurídico que sustenta a reportagem. Leitura de contratos, checagem linha a linha, pedidos de comentário oficial e conversas cautelosas com advogados do jornal compõem uma parte essencial da tensão. Nada é publicado sem documentação e testemunhos que possam ser sustentados em tribunal. Essa camada prática impede simplificações e sublinha que jornalismo investigativo depende de processo validado em equipe. A edição do texto final não aparece como clímax pirotécnico, e sim como etapa de um processo que precisa ser exato para sobreviver ao choque com interesses poderosos.

A vida pessoal das repórteres aparece sem melodrama. Gravidez, exaustão, cuidado com crianças pequenas e a sensação de ameaça constante dão contorno humano ao trabalho. Parceiros, amigas e editoras compõem uma retaguarda que não vira centro da narrativa, mas sem a qual viagens e entrevistas não aconteceriam. O filme registra esse apoio sem didatismo, indicando como investigações longas exigem acordos afetivos e logísticos pouco visíveis nas manchetes.

Comparações com outros dramas jornalísticos aparecem naturalmente, mas “Ela Disse” escolhe permanecer próxima do gesto cotidiano. Em vez de apostar em reconstituições vistosas, prefere o passo a passo: localizar documentos, cruzar nomes, conferir datas, retornar a quem hesitou. Quando o #MeToo entra em cena, o impacto aparece como aceleração de uma conversa já em curso, espalhada por relatos pontuais em vários lugares. A reportagem catalisa esse acúmulo e lhe dá forma pública, empurrando instituições a responder em vez de desviar.

O ponto de virada não nasce de um golpe de sorte. Depende da decisão de assinar um relato, de aceitar que a própria história circule com data, local e protagonistas identificados. A publicação traz alívio e apreensão. O acusado tem dinheiro, advogados e aliados; a reação pública pode oscilar. O filme acompanha essa mistura de vitória e incerteza sem estourar champanhes. O que importa é a força de um parágrafo amparado por documentos, de uma gravação autorizada, de uma assinatura que assume o que se sabe.

Como cinema, “Ela Disse” aposta na clareza e na dignidade do relato. A direção confia no valor dramático de procedimentos que costumam ficar fora de quadro e dá tempo para que uma frase completa mude o rumo de um caso. Fica a sensação de que verdades jornalísticas raramente nascem de iluminações repentinas; resultam de cadeias de pequenos gestos repetidos com cuidado. O jornal fecha a edição, mas o efeito segue em políticas internas, audiências e conversas que não cabem em um dia de notícias. A pergunta que permanece é como proteger quem fala quando os holofotes se apagam.

Filme: Ela Disse
Diretor: Maria Schrader
Ano: 2022
Gênero: Crime/Drama/História
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★