Mulheres que a História da Arte apagou Foto / Arquivo Nacional

 Mulheres que a História da Arte apagou

De quantas pintoras e artistas visuais de renome internacional você se lembra? É possível que o fato de os interessados nesse assunto ignorarem derive justamente do que aprenderam, visto que parte relevante do que aprenderam as excluiu. Hoje em dia é mais comum ouvir falar nelas, a exemplo da mexicana Frida Kahlo — verdadeira sumidade internacional — e da sérvia Marina Abramović, uma das grandes performáticas contemporâneas. Isso obscurece um fato de grande significado: mulheres artistas não eram, até há bem pouco tempo — parece que antes da informação digital —, levadas em consideração. Ao menos por algumas fontes de pesquisa conhecidas, que julgávamos “da melhor qualidade”.

Posso citar dois livros “de referência” sobre arte onde não há mulheres: “Arte Moderna”, de Giulio Carlo Argan, e “Teorias da Arte Moderna”, de Herschel B. Chipp. Profissionais e estudiosos da arte devem conhecê-los muito bem. Tanto um quanto outro cobrem 100 anos de arte, desde o século 19 até os anos 1950-60.

De acordo com tais fontes, é como se esse vasto período simplesmente não tivesse criado uma única mulher artista, nem mesmo a mais conhecida do grande público: a já mencionada Frida Kahlo. O primeiro livro é de crítica e análise, o segundo é de depoimentos dos próprios artistas (e ambos não deixam de historiar, porque são diacrônicos). Um terceiro livro pode ser trazido à luz: “História da Arte”, clássico de E. H. Gombrich. A confiar em Gombrich, não houve mulheres artistas desde o Egito antigo até meados do século 20. E tampouco houve mulheres artistas, segundo Arnold Hauser, que escreveu “História Social da Arte e da Literatura”, obra de recorte sociológico, igualmente abrangente e importante.

Quatro autores de relevo internacional não citarem mulheres artistas não pode ser casual. Porque não é verdade que não há grandes artistas mulheres, desde sempre! A conclusão meio escandalosa é que tais livros são parciais e tendenciosos, para dizer o mínimo. Dirão elas: “misóginos”, um dos termos mais utilizados na atual era da diversidade. Vamos admitir que as mulheres, mesmo as brancas ocidentais, fazem parte (ou fizeram, por séculos) daquela categoria político-sociológica denominada “minorias”, em um ambiente onde homens igualmente brancos e ocidentais é que se destacam. O feminismo tem lá suas razões de ser.

Que crédito podemos continuar dando àqueles quatro grandes autores, depois que descobrimos que existiram artistas fenomenais como Georgia O’Keeffe ou Leonora Carrington, que simplesmente deixaram de lado? Por certo, não é possível condená-los por excluírem esta ou aquela personagem. É impossível citar num livro de arte todos os artistas de relevo, por mais qualificados que sejam. Por mais que seja uma Carmen Herrera, preciosidade da abstração geométrica, ou a dadaísta Hannah Höch, precursora da fotomontagem. O problema não é deixar de citar um nome ou outro: o problema é não citar nenhum. Uma vez que mulheres artistas são muitas, não teria sido correto, e justo, incluir naquelas obras pelo menos as mais representativas?

Somos tentados a acreditar que Argan, Chipp, Gombrich e Hauser — que obviamente conheciam a maioria delas —, fizeram uma escolha consciente ao deixá-las de fora. Porque o resultado é que o cânone das artes plásticas, sob seu ponto de vista, é inteiramente masculino.

As mulheres podem concluir que se trata de um “apagamento” deliberado, feito por esses sisudos homens brancos, que se propuseram a nos instruir sobre um tipo de conhecimento. E também, por outro lado, um processo de legitimação e deslegitimação. Elas poderiam perguntar: que critério é bom o bastante para justificar a exclusão de mulheres da História da Arte, se supomos que o papel da história é obviamente revelar — e não esconder — os fatos? Essa é uma boa questão, mas é também uma ramificação filosófica… E não vamos desviar por esse caminho para não nos distrair em relação ao nosso objetivo, que é reafirmar (pois eles já estão circulando por aí) uma fração desses nomes femininos.

No caso brasileiro, seria simplesmente impossível não reconhecer o papel das mulheres na evolução da arte, ao menos da vanguarda modernista de 1922 e de nosso pós-modernismo, a partir de 1955. É muito natural se o primeiro nome lembrado, neste caso, for o de Lygia Clark, e o de Tarsila do Amaral, no outro.

Lygia Clark
Lygia Clark com uma de suas obras em 1972 | Arquivo Nacional

Não há pintora mais relevante do que Tarsila, em nossa primeira fase modernista, nem mesmo Di Cavalcanti. Ela criou um ícone nacional, o “Abaporu”, obra que, ao lado de “A caipirinha”, está atualmente entre as mais caras da arte brasileira (estão avaliadas em R$ 87 milhões). O “Manifesto Antropofágico”, escrito pelo poeta Oswald de Andrade, só existe porque o marido da artista viu uma obra da esposa e um mundo de ideias (não tão novas assim) fluiu de sua cabeça. Outra artista da qual possivelmente lembramos, que antecede Tarsila e foi pioneira, é Anita Malfatti. Quem primeiro expôs obras expressionistas no Brasil foi Lasar Segall, em 1913. Mas o primeiro brasileiro de nascimento a criar obras expressionistas foi Anita, um ano depois. Sua importância, sobretudo em face da polêmica exposição de 1917 — quando escandalizou Monteiro Lobato —, não é apenas cronológica, mas decorrente de autêntico valor estético. Tanto é que ficou.

Mundo afora, nem sempre as mulheres cumpriram um papel-chave na evolução da pintura ou das artes visuais, como no Brasil, país de forte tradição patriarcal. Isso não significa que não tenha havido grandes artistas do sexo feminino, como vários pintores que são constantemente lembrados. Porém estamos descobrindo, agora, que uma ou outra das mulheres esquecidas não foram apenas grandes na arte de pintar e outros gêneros do certame. Foram, na verdade, fundamentais, tal qual Anita e Lygia em nosso caso, como deixaremos claro nos últimos parágrafos.

Quando se fala de impressionismo, o primeiro nome que nos vem à mente é, por óbvio, o de Claude Monet. Se tivermos que citar mais cinco expoentes desse movimento, nenhum será de mulher, mas de homens: Monet, Degas, Renoir, Sisley, Pissarro… Até recentemente ninguém ia se lembrar de Berthe Morisot e Mary Cassatt, duas extraordinárias pintoras impressionistas, redescobertas neste século. Embora comece a ser corrigida, essa injustiça contra artistas mulheres realmente atravessa a história — ou você alguma vez ouviu falar na renascentista Sofonisba Anguissola? Na barroca Artemisia Gentileschi? Em se tratando de pintura italiana do quattrocento e cinquecento, é provável que certos nomes lhe soem familiares (mesmo Perugino, Carracci, Reni, ou os óbvios Michelangelo, Tintoretto, Caravaggio…), nenhum nome de mulher.

E assim achamos que os homens é que criaram toda a beleza e toda a arte de valor também daquele período, quando isso tampouco é verdade.

Em outro extremo temporal, não é mais admissível falar de expressionismo abstrato, nos Estados Unidos, sem necessariamente incluir pelo menos Lee Krasner, Joan Mitchell e Helen Frankenthaler. A contribuição delas para a arte norte-americana emergente, em meados do século passado, é sem dúvida original. Foram estilistas muito pessoais, criadoras de códigos plásticos diferentes daqueles adotados pelos artistas masculinos que os livros em questão preferiram iluminar. Um deles é o estupendo Willem de Kooning… Mas você já ouviu falar em Elaine de Kooning? Ela era casada com ele, assim como Robert Delaunay o foi com Sonia Delaunay, e Josef Albers com Anni Albers: outras três artistas que andaram esquecidas, à sombra dos maridos. Basta ver os sobrenomes, numa época não muito distante de nossa geração, em que até no registro civil elas continuavam em segundo plano.

Nem sempre o esquecimento é aceitável: aprendemos naqueles livros que quem criou a arte abstrata foi Wassily Kandinsky, em 1911. Como se sentiria Hilma af Klint, diante dessa… “narrativa”? Hilma é a artista sueca que, segundo consta, criou nada menos que a pintura abstrata, antes de Kandinsky e antes dos cubistas, hoje reconhecida por instituições de peso como o museu Guggenheim. Então, justiça seja feita: Hilma não expôs em vida antes de Kandinsky. Mas expôs muito antes de os livros listados terem sido escritos. É possível que o ambiente escolhido por ela — o World Conference on Spiritual Science, em Londres (1928) — não tenha contribuído para a repercussão de sua obra. Além disso, sua pequena produção parece não estabelecer vínculo orgânico com qualquer conquista das décadas anteriores, ao contrário de Kandinsky, cuja transformação alquímica deriva claramente de uma feliz combinação de expressionismo alemão com fauvismo.

Diferente, a mística Hilma é um caso sui generis tanto quanto William Blake e o aduaneiro Henri Rousseau. Mas é tempo de fazer revisionismo histórico e, quem sabe (se for mesmo o caso, mediante pesquisa rigorosa), os louros serem dados. A artista sueca é, no mínimo, uma boa hipótese.

A história realmente não perdoa e o prejuízo sobrou para Argan, Chipp, Gombrich e Hauser, que teriam então escrito obras incompletas. Porque, pensando bem, seus livros (e os não listados que escolheram ir pelo mesmo caminho) cometeram não apenas uma injustiça contra mulheres artistas. Cometeram uma injustiça contra a própria arte.

J.C. Guimarães

Crítico literário.