No silêncio árido das paisagens neozelandesas, “O Caçador”, dirigido por Ian Sharp, é como uma meditação sobre a perseguição, não apenas a física, mas a moral e a histórica. Ambientado no início do século 20, o filme acompanha Arjan van Diemen (Ray Winstone), um ex-soldado bôer que, após perder tudo nas guerras do sul da África, chega à Nova Zelândia carregando a herança de um passado que já não o reconhece. Quando um marinheiro maori, Kereama (Temuera Morrison), é falsamente acusado de assassinar um soldado britânico, Arjan é contratado para capturá-lo. O que se desenrola é menos um jogo de caça e fuga do que um encontro entre dois homens moldados por feridas coloniais, ambos exilados dentro de suas próprias histórias.
Sharp parte de um enredo familiar: o do caçador e da presa para desmontar o próprio mito que o sustenta. O diretor compreende que, em contextos coloniais, não há perseguição inocente. A caça de Kereama não se dá por justiça, mas por conveniência política, e Arjan, ao aceitar o contrato, torna-se cúmplice de um sistema que ele próprio despreza. O filme traduz esse dilema ético em imagens de uma beleza inquietante: montanhas envoltas em névoa, rios que se abrem como cicatrizes e vales que parecem conter, sob a serenidade aparente, uma memória de violência. O espaço natural, tão vasto e deslumbrante, funciona como testemunha muda da brutalidade humana, um contraste entre a perfeição da terra e a degradação dos homens que nela vagam.
Ray Winstone, em uma das performances mais contidas de sua carreira, encarna Arjan com a densidade de quem carrega culpa e desilusão em cada gesto. Ex-combatente que sobreviveu à ruína de seu povo, ele traz nos olhos a fadiga de quem já foi tanto vítima quanto algoz. Sua jornada pela mata é também um retorno involuntário ao passado: cada passo em direção ao fugitivo é um mergulho mais fundo no próprio desamparo. Temuera Morrison, por sua vez, investe Kereama de uma dignidade silenciosa, resistindo não apenas à perseguição, mas à própria representação do “selvagem” construída pelo imaginário colonial. Quando os dois finalmente se encontram, a tensão que os separa, o branco europeu marcado pela derrota e o indígena falsamente acusado, revela-se como um espelho trincado: ambos sobrevivem em mundos que já decidiram o que devem ser.
O filme se equilibra entre a ação e a contemplação, mas é na segunda que alcança sua força mais autêntica. Ian Sharp não se interessa em reproduzir o ritmo hollywoodiano das caçadas ou o espetáculo da violência. O que o move é a ideia de confronto como purgação. Em “O Caçador”, a perseguição é um ritual de expiação. O caçador precisa compreender que sua presa é a última fronteira de sua própria humanidade. Essa inversão simbólica ocorre lentamente, quase imperceptível, mas ganha força à medida que o cenário natural se torna o verdadeiro protagonista. A natureza não é apenas paisagem: ela impõe uma moral. A vastidão do território humilha os personagens, lembrando-lhes que, diante do mundo, todas as guerras humanas são ínfimas.
Sharp filma com rigor pictórico e uma sensibilidade quase espiritual. Cada enquadramento parece pesar o conflito entre a beleza e a barbárie. Há ecos do western revisionista, sobretudo de “Chato’s Land” (1972), mas o filme neozelandês se afasta do discurso vingativo e assume um tom mais elegíaco. A caçada não é uma revanche, mas uma tentativa de compreender a violência colonial como um ciclo interminável de culpa e esquecimento. Quando Arjan hesita diante de seu dever, o espectador percebe que o verdadeiro julgamento já ocorreu: o inimigo não é mais o homem diante dele, mas a ideologia que o transformou em instrumento.
A trilha sonora discreta e o uso do silêncio reforçam a dimensão contemplativa do filme. “O Caçador” se desenrola em ritmo lento, quase hipnótico, convidando o público a respirar a solidão de seus personagens. O que poderia parecer uma limitação orçamentária, poucos cenários, pouca ação, torna-se virtude estética: a paisagem fala por eles. As montanhas e os rios tornam-se metáforas de resistência, como se o território se recusasse a esquecer o sangue derramado sobre ele. A câmera de Sharp, fascinada pela vastidão, recusa o exotismo e opta pela reverência: o país filmado não é um cartão-postal, mas uma cicatriz geográfica.
Há, contudo, uma deliberada imperfeição no desfecho. O filme não busca catarses. Quando o confronto final ocorre, ele não liberta nem condena, apenas confirma que, no ciclo colonial, não há vitórias possíveis. O caçador e o perseguido partilham uma solidão ancestral, condenados a repetir os gestos da opressão até que o tempo os apague. O título, “O Caçador”, ganha assim um duplo sentido: é o rastreador, mas também aquele que tenta reencontrar o próprio caminho depois de se perder.
“O Caçador” é, portanto, mais do que um thriller histórico: é uma parábola sobre o olhar europeu diante do mundo que destruiu. O filme examina o eco das guerras imperiais, a culpa dos sobreviventes e a fragilidade das verdades morais quando confrontadas pela paisagem. Em seu ritmo sereno e em sua beleza ferida, há algo de profundamente humano, o reconhecimento de que a redenção talvez não exista, mas a compreensão, sim. Ian Sharp transforma a perseguição em um gesto de luto: a busca de um homem por outro que, sem saber, o conduz de volta à própria consciência.
★★★★★★★★★★