As Flores do Mal: Charles Baudelaire e o cântico da modernidade

As Flores do Mal: Charles Baudelaire e o cântico da modernidade

Quando “As Flores do Mal” foi publicado em 1857, não se tratava apenas do lançamento de um livro, mas da abertura de um novo tempo. A sociedade francesa, imersa em moralismos e valores burgueses, viu-se confrontada por versos que misturavam o sublime ao sórdido, a melancolia ao grotesco. Charles Baudelaire inaugurava um novo capítulo na história da literatura e subvertia a ordem das coisas. Condenado por ofensa à moral pública, o poeta teve seis poemas censurados, acusados de atentarem contra os “bons costumes”. O julgamento, um marco histórico, tornou-se a consagração de um autor que faria da marginalidade e do escândalo as suas bandeiras.

Lançado no mesmo ano de “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert — também alvo de censura —, “As Flores do Mal” é o produto de uma transição: a passagem do romantismo ao que mais tarde chamaríamos simbolismo. A obra preserva o rigor formal do verso alexandrino, consolidado por Racine e revisitado por Victor Hugo, mas de maneira revolucionária. Em Baudelaire, a métrica clássica, da ordem e da harmonia, é violada pelo prosaísmo temático, como se a perfeição fosse um artifício para encobrir as feridas da modernidade.

Baudelaire não destrói a tradição; ele a corrompe para renová-la. O que pode parecer um paradoxo — o prosaísmo em meio a versos de tal rigor — é a base de sua originalidade. O poeta, atento à decadência e aos becos sujos de Paris, cria uma poesia que não busca o sublime ou o heroico clássico — ela reafirma o asfalto, as multidões. “As Flores do Mal” consolida e funda a poesia moderna.

As versões de As Flores do Mal

A segunda versão da obra, publicada em 1861, acrescenta os célebres “Quadros Parisienses”, que redefinem a recepção do livro. A primeira edição é marcada pelo choque moral, e a inclusão desses poemas consolida a imagem de Baudelaire, poeta da cidade. Paris não é apenas cenário; também é sujeito lírico, com luzes e sombras, boulevards e subsolos. A capital torna-se gente, espaço de contradições: progresso e ruína, beleza e decadência.

“Modernidade”, termo que Baudelaire emprega pela primeira vez no ensaio “O Pintor da Vida Moderna”, é o eixo que sustenta sua obra. Para ele, ser moderno não é apenas pertencer ao presente, mas captar sua essência fugidia e contraditória. Essa modernidade está intrinsecamente ligada ao avanço do capitalismo e à precarização da vida urbana. Nas ruas de Paris, o poeta descobre tanto o espetáculo quanto o horror: o flâneur que observa as massas encontra nelas a solidão mais profunda.

A originalidade de “As Flores do Mal” é desconcertante. Como sintetizar um livro que celebra, ao mesmo tempo, o belo e o abjeto? Baudelaire redefine a sociedade de sua época e os próprios limites da poesia. Sua obra é, sim, manifesto, convocação à reflexão sobre o papel da arte em tempos de crise. O choque inicial provocado pelo livro é resultado de sua ambiguidade. Baudelaire é um poeta da síntese: entre o ideal e o real, entre o sagrado e o profano, ele caminha em um território de fronteiras borradas. Em seus poemas, o autor sugere que o universo é um templo, onde símbolos dialogam em uma harmonia secreta. Essa visão, que antecipa o simbolismo, é uma afirmação da transcendência e uma confissão da sua impossibilidade.

A linguagem de Baudelaire

A linguagem baudelairiana é um espetáculo à parte. A musicalidade de seus versos, comparada a uma sinfonia, encontra paralelos na ideia de sinestesia que o poeta explora em sua obra. Mas essa música é interrompida por dissonâncias, imagens perturbadoras que refletem a angústia do homem moderno. Há nesta poesia um olhar cuidadoso sobre a condição humana. A melancolia é um estado de espírito e uma lente que remodela a paisagem. Em “Spleen e Ideal”, a luta entre a aspiração ao sublime e o peso do tédio transforma-se em um drama universal, e todos os leitores são convocados.

Baudelaire também foi um visionário. Ao incorporar a cidade, a multidão e o anonimato como temas poéticos, ele antecipa preocupações que se tornariam centrais no século 20. Walter Benjamin identifica o flâneur como uma figura-chave para compreender o impacto da urbanização e do consumo na subjetividade moderna. Ao final de sua vida, Baudelaire parecia ter consciência de sua monumentalidade. Em carta à sua mãe, ele escreveu: “Eu sei que estou entre os imortais”. Essa frase soa arrogante, mas é uma constatação de alguém que sabia ter alterado o curso da literatura. Para mim, falar sobre “As Flores do Mal” é uma experiência quase religiosa. Cada leitura revela novas camadas, sentidos, contradições. Como professor e crítico, sinto que o meu desafio é transmitir a profundidade e a complexidade de uma obra que resiste às categorizações. Baudelaire é o poeta do século 19 e poeta de todos os tempos. Sua obra, enraizada em seu contexto histórico, é universal em suas questões, continua a nos desafiar e desconcertar.

Baudelaire e o amor pela poesia

Na obra-prima de Baudelaire pulsa um amor dilacerante. Não se trata de sentimento etéreo ou celestial — ele fala de amor impregnado de erotismo e um quê de sadismo. Baudelaire rasga o tecido da idealização romântica, expondo o desejo em sua carnalidade mais nua. O poeta busca esse choque: o amor em Baudelaire é tão sublime quanto abissal, redentor e condenatório. Nele, encontramos ecos de “O Amor e o Ocidente”, de Rougemont, que sugere: o amor romântico é uma dança com o trágico.

Talvez a força desse amor transgressor explique a rejeição inicial do livro. Banido pelas autoridades, permaneceu sob a sombra da censura até o início do século 20. A proibição, como nos lembra Paul Valéry em seu ensaio “Situação de Baudelaire”, reforça a potência subversiva da obra. Valéry enxerga em Baudelaire não só um grande poeta, mas o poeta francês por excelência, capaz de unir o rigor clássico à ruptura moderna.

Mas a censura não foi o único algoz de Baudelaire. Sua própria biografia, marcada por tensões familiares, dívidas intermináveis e um exílio emocional constante, se reflete em sua poesia. Nascido em 1821, em Paris, o poeta viveu no olho do furacão das transformações que moldaram o século 19. Era filho de um funcionário público e de uma mulher ambiciosa. Ele carregava desde cedo o estigma da inadequação. A perda precoce do pai e o subsequente casamento da mãe com um militar austero, o general Aupick, apenas intensificaram seu sentimento de alienação.

Sua vida pessoal foi tumultuada, e sua obra é um testemunho de como o caos pode ser transmutado em beleza, o ápice de uma produção literária que também inclui “Spleen de Paris”, coletânea de poemas em prosa que complementa, amplifica e dialoga com o universo do seu “As Flores do Mal”. Se “As Flores do Mal” é feita de versos alexandrinos, “Spleen de Paris” é sua versão em jazz: livre, imprevisível e igualmente penetrante.

Há uma relação intrincada entre essas duas obras. Como sugere Benjamin, a passagem para o poema em prosa é uma resposta à modernidade da Paris do Segundo Império. No turbilhão das transformações urbanas, a poesia tradicional parecia insuficiente para capturar a fragmentação da experiência; é nesse contexto que Baudelaire se torna o poeta da cidade. Para T. S. Eliot, que o chama de “o último grande romântico”, Baudelaire é único por trazer a metrópole como protagonista de sua poesia. A sua Paris não é uma paisagem — tem vida, é pulsante, caótica. Cada rua, esquina, sombra carrega o potencial de uma epifania ou um abismo.

Baudelaire, ao inventar a palavra “modernidade”, o fez para descrever uma experiência única de transitoriedade e eternidade coexistindo. Em “As Flores do Mal”, a modernidade é um tema, é a forma toda e uma estética. Seus versos capturam o efêmero e o eterno, o trivial e o sublime, o feio e o belo.

Essa estética moderna se manifesta também na relação entre amor e morte. Em poemas como “Uma carniça”, Baudelaire revela uma perturbadora beleza no que é considerado repulsivo. É o encontro entre o elevado e o grotesco, que Mikhail Bakhtin, em “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, identifica como uma característica essencial da estética carnavalesca.

A poesia de Baudelaire contém tensões irresolvíveis e dualidades que nunca se conciliam plenamente. A cidade é o cenário da perdição e da redenção; o amor é sublime e abissal. Essa complexidade torna a sua poesia inesgotável, como observa Yves Bonnefoy em “Baudelaire e o lugar do real”. Temos um poeta que não apenas transformou a poesia, mas redefiniu o papel do poeta, abandonando o vate inspirado que canta verdades universais e exaltando o flâneur que observa, questiona e sofre as contradições do mundo moderno. Octavio Paz, em “O Arco e a Lira”, diz que Baudelaire é o poeta da crise, um ponto de inflexão entre o passado e o futuro.

Essa crise é visível em sua relação com a linguagem. Cada palavra tem carga emocional, e esta potência explode no leitor. É um paradoxo: a formalidade clássica escondendo uma revolução submersa. Chegamos ao ponto em que Baudelaire se torna um marco com todas as nossas contradições, medos e desejos. Ler “As Flores do Mal” é confrontar a condição humana em toda a sua complexidade; é reconhecer que o verdadeiro poeta não é aquele que nos dá respostas, mas aquele que nos faz perguntas que não conseguimos ignorar.

Benjamin, o poeta e o flâneur

Benjamin revelou uma face até então pouco explorada do poeta: a de intérprete de seu tempo, quase um historiador das mentalidades, fazia historiografia em versos. Para Benjamin, Baudelaire é a testemunha poética de uma Paris em transformação, o cronista que transforma o banal em épico. Ao introduzir o flâneur, Benjamin captura a essência do poeta: o desassossego urbano, o choque das multidões, a melancolia das ruas. Esse retrato da modernidade é historiográfico e denúncia sutil da alienação que o capitalismo impõe, tornando o poeta um visionário cujas observações ecoam nos becos e avenidas das grandes cidades.

Os simbolistas reivindicam Baudelaire como pai fundador, especialmente pelo poema “Correspondências”. Nele, o poeta não só introduz a ideia de que a natureza é um templo de signos, mas também propõe que os sentidos humanos formam uma sinestesia espiritual. Essa abordagem revolucionária moldou o simbolismo, permitindo que figuras como Verlaine e Rimbaud ampliassem as fronteiras da linguagem poética. O uso das correspondências transcende o literário: Baudelaire constrói uma metafísica da poesia, sugerindo que o mundo é regido por harmonia e caos em igual medida. Ele também nutria paixão pela pintura. Em “O Pintor da Vida Moderna”, ele celebra a habilidade dos artistas de capturar o transitório que escapa aos olhos apressados. Essa visão moldou sua própria poesia, onde imagens vívidas criam quadros quase tangíveis. Em sua obra, a cor e a luz desempenham papéis essenciais, transportando o leitor para um universo plástico. Delacroix foi seu mestre na pintura, e Baudelaire devolveu-lhe o favor ao traduzi-lo para o mundo dos versos, fazendo de sua poesia uma exposição permanente de cenas inesquecíveis.

Benjamin identificou em Baudelaire o poeta do spleen, a melancolia que ultrapassa o abatimento e torna-se potência criativa. Em vez de ceder à apatia, Baudelaire transforma o spleen em arte. Ele é o alquimista da tristeza, capaz de encontrar beleza no abismo, e esse traço explica sua influência sobre poetas posteriores.

Baudelaire influenciou o simbolismo literário e abriu portas para uma reflexão filosófica sobre as interconexões entre linguagem, arte e experiência. Em “Correspondências”, as metáforas sensoriais criam uma ponte entre o tangível e o espiritual, antecipando debates que influenciaram filósofos como Gaston Bachelard. O mundo, para Baudelaire, é um caleidoscópio de sensações, e o poeta é o único capaz de decifrar sua gramática oculta.

Duas traduções: duas leituras complementares

As traduções de Ivan Junqueira e Fernando Pinto do Amaral oferecem leituras complementares de Baudelaire para o público de língua portuguesa. Junqueira preserva a solenidade clássica dos versos originais, enquanto Pinto do Amaral se destaca pela fluidez imagética, quase cinematográfica. Ambas as traduções iluminam as complexidades de “As Flores do Mal”, tornando-as acessíveis sem jamais sacrificar a profundidade. Ler Baudelaire nesses dois registros é uma experiência dupla: jornada pelo rigor formal ou esplendor visual.

Baudelaire nos lê. Seus poemas nos decifram, expondo nossas fragilidades e aspirações. Nele encontramos não apenas o retrato de um homem ou de uma época, mas o mapa de nossa própria alma. Valéry disse que “Baudelaire é um clássico porque jamais envelhece”, atualizando-se em nós, refazendo-se, perene, a cada leitura e releitura.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.