Há algo de deliciosamente incômodo em “Galera do Mal”, um filme que se disfarça de comédia colegial para, na verdade, esfolar o verniz moral de uma América que tenta conciliar fé e controle social. O que começa como sátira adolescente logo se revela um espelho distorcido (e dolorosamente reconhecível) de uma geração criada sob o dogma da pureza e o pavor da diferença. A escola cristã retratada por Brian Dannelly é um microcosmo onde o pecado é menos uma questão espiritual que um mecanismo de hierarquia. E nesse cenário, a graça divina parece ter sido substituída por slogans motivacionais e performances de santidade, uma espécie de teatro da redenção que não tolera improvisos.
O mais interessante do filme não é sua crítica direta à religião, mas na exposição sutil de como a fé, quando domesticada pelo moralismo, se torna um instrumento de exclusão. A protagonista, Mary, encarna a contradição central dessa cultura: criada para acreditar que Deus recompensa os bons e pune os desviados, ela descobre que o próprio ato de amar pode ser considerado uma falha moral. Sua gravidez não é apenas um evento narrativo, mas um símbolo do colapso entre o ideal e a experiência. Dannelly e o roteirista Michael Urban constroem a partir disso um retrato desconcertante da adolescência religiosa, onde a inocência é constantemente sabotada por discursos de salvação que servem mais para preservar a autoridade do que para acolher o humano.
A sátira aqui é venenosa, mas nunca desonesta. O riso nasce do desconforto, e não da superioridade. A figura de Hilary Faye, interpretada com histeria calculada por Mandy Moore, é o retrato perfeito da fé transformada em espetáculo: uma missionária de Instagram antes do tempo, cujo fervor serve menos a Deus que à própria necessidade de ser vista como irrepreensível. Já o personagem de Jena Malone, de uma doçura rebelde e silenciosa, traduz o embate entre espiritualidade e culpa, uma espiritualidade que não cabe nas regras, uma culpa que o dogma não sabe curar.
É notável como “Galera do Mal” evita o tom panfletário. Mesmo quando flerta com a caricatura, o filme guarda uma ternura inesperada por seus personagens, inclusive pelos vilões, que jamais são tratados como monstros. Dannelly parece sugerir que o fanatismo não nasce do ódio, mas do medo: o medo de perder o controle sobre um mundo que não obedece mais às antigas fórmulas da pureza. Nesse sentido, o longa não é uma crítica à religião, e sim à maneira como o poder se traveste de fé para legitimar o julgamento.
A partir da metade, o filme oscila entre o sarcasmo e o sermão, perdendo parte da agudeza inicial, mas essa fragilidade também o humaniza. É como se Dannelly, ao ironizar os rituais do cristianismo americano, se visse compelido a restaurar alguma forma de esperança, ainda que ingênua. O final, frequentemente criticado por sua doçura, funciona como um gesto de reconciliação: não com a doutrina, mas com o direito de errar. É nesse gesto que o filme encontra sua verdadeira salvação, não a que promete um céu pós-morte, mas a que nasce da capacidade de reconhecer o outro sem o escudo da moral.
“Galera do Mal” é uma comédia disfarçada de confissão. Uma confissão não de culpa, mas de lucidez. E talvez por isso ainda soe atual: porque continua a cutucar uma ferida que as sociedades religiosas fingem ter cicatrizado, a de que a pureza é uma ficção conveniente, inventada por quem teme o que não pode controlar.
★★★★★★★★★★