Está escondido na Netflix — e é um dos filmes mais sinceros já feitos sobre crescer Divulgação / Miramax

Está escondido na Netflix — e é um dos filmes mais sinceros já feitos sobre crescer

Um relações-públicas de Nova York perde o chão após a morte da esposa e precisa assumir sozinho a criação da filha, trocando o brilho dos eventos corporativos por uma rotina que ele desconhecia. “Menina dos Olhos” reúne Ben Affleck, Liv Tyler, Raquel Castro e George Carlin sob direção de Kevin Smith, que desloca a ação para o subúrbio de New Jersey e acompanha, com humor moderado, a lenta reordenação de prioridades desse homem. A trajetória parte de um fracasso público e desemboca na intimidade de tarefas diárias, onde cada decisão afeta diretamente a criança que cresceu junto com a ausência. O conflito principal se dá entre o impulso de voltar ao antigo prestígio e a descoberta de que a presença física tem peso próprio.

O cineasta conhecido por diálogos acelerados em “O Balconista”, “Barrados no Shopping” e “Procura-se Amy” reduz o volume das piadas e aposta na observação. Aqui, a graça nasce de constrangimentos triviais, respostas atravessadas e conversas que escorregam para conselhos inesperados. A comédia funciona como respiro para cenas dominadas por tarefas repetidas, fila, cansaço e compromissos escolares, sem buscar saltos artificiais. Smith aparenta entender que, nesse universo, o gesto que vale não é a tirada esperta, mas o olhar de quem aprende devagar, e a câmera acompanha esse aprendizado com uma sobriedade que combina com a história.

Ben Affleck compõe um protagonista teimoso, vaidoso e afetivo em medidas reconhecíveis. O ator encarna um homem que se orgulha do currículo e, ao mesmo tempo, precisa aprender a pedir ajuda, tropeçando na própria autoconfiança. Raquel Castro, como a filha, oferece naturalidade e senso de tempo cômico sem afetação. Liv Tyler interpreta uma jovem adulta que se aproxima com curiosidade franca, quebrando barreiras do viúvo sem discursos salvadores; sua presença ilumina conversas que servem de ponte entre passado e projeto de futuro. George Carlin, distante do humor ácido que o consagrou, assume um pai de poucas palavras, com cansaço no rosto e paciência limitada, o que impede que a narrativa escorregue para um consolo fácil.

A encenação privilegia rostos e espaços comuns: quartos pequenos, cozinhas, ruas de bairro, lojas com prateleiras gastas. O desenho de som deixa os silêncios trabalharem, e a fotografia evita filtros ostensivos, confiando em luzes de interiores e em tardes cinzentas da vizinhança. O resultado valoriza mãos ocupadas, objetos de uso cotidiano e pausas que frequentemente faltam em comédias urbanas. Quando o trabalho entra em cena, a mise-en-scène destaca reuniões e apresentações como arenas de vaidade, contrapostas à logística de levar e buscar criança, montar lanche e improvisar solução para o imprevisto. Esse atrito rende situações reconhecíveis para qualquer adulto que já abriu mão de algo profissional para estar presente em momentos que não se repetem.

O roteiro, de Kevin Smith, não esconde uma vocação para frases diretas e pequenas lições. Em alguns trechos, a trilha musical sublinha emoções de maneira literal, e há passagens em que a narrativa procura moralizar escolhas. Ainda assim, a honestidade do conjunto prevalece porque conflitos são mantidos em registro íntimo e deixam marcas visíveis. O humor aparece como estratégia de convivência, não como fogos de artifício. Quando o protagonista tenta negociar com a própria consciência, o filme prefere uma conversa interrompida, um olhar de desapontamento, uma pergunta simples feita pela filha. O interesse se concentra nesse circuito íntimo, onde cada desatenção cobra preço emocional.

Comparações inevitáveis com o período anterior do diretor ajudam a dimensionar a mudança. Se “O Balconista” exibia uma juventude encurralada por empregos precários e cultura pop, “Menina dos Olhos” observa a meia-idade confrontada por contas, luto e promessas antigas que já não cabem. A passagem do tempo é visível nos corpos e na economia da encenação. Em vez de listas de referências, aparecem memórias guardadas, fotos, relatos familiares que reorganizam o passado recente do personagem. Kevin Smith, que sempre escreveu de dentro de um universo afetivo específico, demonstra aqui interesse em responsabilidades que não podem ser terceirizadas, o que dá textura dramática às escolhas mais simples.

As atuações sustentam esse interesse. Affleck encontra medida para a arrogância que cede espaço à vulnerabilidade sem derramar autopiedade. Tyler evita a função de fada solucionadora e aparece como alguém com desejos próprios, planos e humor que descasca a casca do protagonista. Castro foge da esperteza artificial comum a papéis infantis e constrói uma criança cuja inteligência se manifesta em observações breves e perguntas diretas. Carlin oferece uma figura adulta que erra, acerta e cansa, mas não adota tom de sermão. Essa soma confere credibilidade à vida doméstica mostrada em cena, um ambiente onde decisões pequenas alteram rotas futuras.

Há escolhas que podem dividir o público. A música às vezes empurra lágrimas; a comédia, por vezes, recua quando poderia arriscar mais; e a montagem guarda pressa na conclusão de conflitos secundários. Mesmo assim, permanece a sensação de uma obra interessada em vínculos, comedido senso de humor e um olhar respeitoso para pais e filhos que inventam soluções possíveis. O filme não busca grandes declarações nem reinvenções, preferindo acompanhar como a responsabilidade diária altera desejos e reajusta ambições. Essa contenção condiz com personagens que trabalham cedo, se desculpam tarde e aprendem a celebrar vitórias discretas.

Ao escolher contar essa história, Kevin Smith arrisca afastar parte da base que o consagrou com referências incessantes e sarcasmo. Em troca, ganha acesso a um registro adulto, atento a como as pessoas falam quando não têm energia para melhorias performáticas. “Menina dos Olhos” confirma que a comédia dramática pode respirar sem truques vistosos quando o centro de gravidade está na convivência. Entre recaídas e tentativas, fica a imagem de um homem que substitui prestígio por presença e encontra outro tipo de satisfação, menos barulhenta e mais durável. A pergunta que permanece é se esse aprendizado resiste quando a próxima oferta tentadora bater à porta.

Filme: Menina dos Olhos
Diretor: Kevin Smith
Ano: 2004
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★