Uma história doce e divertida que transforma qualquer dia comum em um dia feliz — e está na Netflix Divulgação / Netflix

Uma história doce e divertida que transforma qualquer dia comum em um dia feliz — e está na Netflix

Uma pianista muda-se para um apartamento antigo com o objetivo de retomar o estudo diário e recuperar a confiança no próprio talento. No imóvel colado ao seu, um vizinho disciplinado precisa de silêncio para trabalhar e manter a rotina sob controle. O piano invade o outro lado, a exigência de quietude comprime a liberdade de quem precisa praticar, e a discussão inicial vira tentativa de acordo. Em “Uma Parede Entre Nós”, dirigido por Patricia Font e protagonizado por Aitana e Fernando Guallar, o romance nasce desse choque de necessidades e se alimenta de uma convivência que começa sem contato direto.

A produção parte de uma premissa simples: a parede fina é obstáculo e ponte. A proximidade obrigatória força os personagens a definir regras, ceder horários, inventar modos de coexistência. O filme é uma nova versão do longa francês de 2015, exibido no Brasil como “Um Encontro às Cegas”, e preserva a ideia de que a voz antecede o olhar. O apartamento funciona como cenário único e como medida de intimidade, em que portas, corredores e janelas passam a refletir o avanço ou a hesitação de cada decisão.

Patricia Font mantém a câmera perto das reações, sem fazer alarde. Olhares desviados, risos contidos, respirações que denunciam nervosismo: são sinais mínimos que constroem a confiança. A direção prefere acompanhar as idas e vindas de um acordo doméstico a buscar reviravoltas grandiloquentes. Quando a música acerta o tempo, o vizinho relaxa; quando a conversa escapa do combinado, a tensão retorna. A história se desenha em passos curtos, com pequenos ganhos e perdas que reorientam prioridades, como acontece quando um hábito novo precisa caber na vida de duas pessoas.

O som ocupa papel central. Em vez de usar trilhas invasivas, o filme aposta em piano, batidas de objetos, vozes filtradas pelo tijolo. Cada barulho tem intenção: estudo, irritação, pedido de atenção, consolo improvisado. Há passagens em que o silêncio pesa mais que qualquer fala, criando expectativa para a resposta seguinte. O desenho sonoro cria um fio contínuo entre os apartamentos e permite que sentimentos avancem antes do encontro frente a frente, preservando a curiosidade sobre o que acontece quando a parede deixa de mediá-los.

Aitana interpreta a pianista como alguém que alterna coragem e dúvida. A personagem treina, erra, repete, vibra quando um trecho sai bem, cai quando falha, e segue em frente. O cotidiano do estudo sugere disciplina sem transformar a personagem em estampa motivacional. Fernando Guallar compõe um vizinho que confia na rotina e tenta controlar o que pode. Ele ajusta alarmes, ordena a mesa, planeja tarefas e se irrita quando o imprevisto entra pela fissura da parede. O humor aparece no contraste entre o impulso musical de um lado e a necessidade de previsibilidade do outro, contraste que vai se atenuando à medida que a escuta se torna mais generosa.

O elenco de apoio amplia o mundo sem roubar o centro da história. Amigos e parentes opinam, dão conselhos, cobram prazos, oferecem abrigo. São intervenções breves que lembram como cada escolha afetiva muda horários e obrigações. O roteiro, assinado com mão leve, não estica subtramas; usa esses encontros rápidos para indicar pressões externas que pesam sobre o casal em formação, como prazos profissionais e expectativas familiares que raramente tiram férias.

Visualmente, o filme aposta em luz clara e composição que valoriza molduras, espelhos e vãos de porta. Esses elementos funcionam como metáforas simples de passagem e recuo. Quando os cômodos parecem menores, a sensação não vem de truques, mas da evidência de que a presença do outro muda a disposição do espaço. A edição alterna planos dos dois apartamentos com fluidez, fazendo com que o espectador veja sem confundir territórios. Pequenos objetos — um metrônomo, um caderno com anotações, um protótipo em construção — anotam a vida que segue e indicam o que cada um está disposto a ajustar.

O humor evita humilhações. A graça nasce de mal-entendidos cotidianos: recados que chegam com atraso, frases truncadas, coincidências de horário. Quando um acordo falha, os personagens tentam outro arranjo e seguem testando a própria paciência. Essa escolha confere humanidade às falhas e impede que o riso vire punição. Há leveza nas tentativas de conciliação, e o filme se permite rir da teimosia adulta sem transformar ninguém em alvo permanente.

Como refilmagem, “Uma Parede Entre Nós” respeita o eixo do material francês e o traduz para um registro mais solar, interessado em recomeços. A referência a “Um Encontro às Cegas” se nota sobretudo na centralidade do som, enquanto a versão espanhola enfatiza o trabalho diário para que um relacionamento caiba em agendas ocupadas. A questão não é apenas se há química, mas se existe disposição para manter o pacto quando a novidade passa e a rotina volta a cobrar presença.

A progressão dramática preserva a curiosidade sem recorrer a suspense artificial. Um pedido de silêncio vira convite para dividir um período; o convite vira hábito; o hábito abre espaço para confidências. Em sequência, surge a pergunta inevitável: como transformar essa intimidade de vozes em convivência concreta? A expectativa não se resolve com truques, porque o próprio filme se comprometeu a acompanhar gestos verificáveis. O interesse se mantém na observação de como cada concessão tem custo e recompensa, e de como a reciprocidade precisa ser praticada para não se perder.

No retrato de duas pessoas adultas que tentam conciliar ambição e desejo de companhia, o longa encontra seu ponto mais sólido. O piano não existe apenas para fornecer clima; é trabalho, disciplina, necessidade. O vizinho não busca isolamento por arrogância; busca controle para lidar com medo de desordem. Quando os dois descobrem que a escuta pode virar rotina comum, aparece a chance de um vínculo que não depende de promessas incendiárias. Falta saber se a presença física reforça essa confiança ou se revela diferenças que o tijolo atenuava.

Sem moral fechada, “Uma Parede Entre Nós” prefere registrar avanços e tropeços com atenção a detalhes que se podem verificar: horários combinados, mudanças de hábito, pequenas renúncias que abrem espaço para o outro. O desfecho evita explicações e deixa o futuro apontado por sinais concretos, como um piano afinado e uma agenda menos rígida, indícios de que a escuta ganhou corpo e pede continuidade.

Filme: Uma Parede Entre Nós
Diretor: Patricia Font
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★