“Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, pertence à categoria rara de experiências que não dão explicação imediata e convidam o espectador a atravessar o desconforto como se fosse uma iniciação. A narrativa, que se passa em um século 19 alternativo, parece desenterrada de um sonho febril: um cientista devolve à vida o corpo de uma mulher morta, implantando-lhe o cérebro do feto que ela carregava. Dessa aberração nasce Bella Baxter (Emma Stone), criatura impossível, pura e ao mesmo tempo inquietantemente lúcida. É a partir dela que o filme se constrói como uma parábola grotesca sobre o que significa nascer, escolher e, sobretudo, não se curvar à moral dos outros.
Desde o primeiro instante, Lanthimos transforma o artifício em virtude. O mundo de ”Pobres Criaturas” não busca verossimilhança, ele se impõe como um delírio visual em preto e branco que aos poucos se colore, como se o próprio universo amadurecesse junto com Bella. Cada cenário parece brotar de um ateliê do absurdo. Casas que se torcem, cidades que flutuam, roupas que mais aprisionam do que adornam. A direção de arte e a fotografia são a tradução plástica do olhar de uma mulher que vê o mundo sem lentes sociais, sem convenções. Bella observa tudo com a curiosidade de quem nasceu ontem e, por isso, percebe o quanto o mundo está viciado em formas previsíveis de existência.
O gesto mais radical do filme é, talvez, devolver à inocência o peso da consciência. Bella é um corpo que se descobre sem culpa, um espírito que aprende sem medo. A cada movimento, ela confronta as ideias envenenadas de pertencimento e obediência, aquelas que, historicamente, sustentam o papel feminino como algo a ser contido, corrigido ou “civilizado”. Quando se nega a casar com quem lhe é imposto, quando faz do prazer um exercício de autoconhecimento, Bella implode a narrativa de submissão que a tradição tenta reescrever como destino. A liberdade, aqui, não é uma abstração filosófica: é uma prática diária de desobediência.
Há algo de profundamente provocador na forma como o filme aborda o amor. Em “Pobres Criaturas”, amar é sinônimo de possuir, e Lanthimos esmiúça essa perversão com ironia quase cruel. O cientista que a ressuscita a ama tanto que deseja mantê-la trancada. O advogado sedutor que a leva para o mundo a ama tanto que tenta sequestrá-la. Todos os homens de Bella amam como se amar fosse uma variação do verbo “reter”. Ela, ao contrário, ama em movimento, e justamente por isso não pertence a ninguém. Seu afeto é revolução, não contrato. O filme não transforma essa independência em heroísmo; ele a retrata com humor, contradição e uma inocência que fere. Bella erra, se embriaga, se prostitui, se engana, mas o erro é seu, e é essa posse do erro que a torna livre.
O crescimento intelectual e moral da personagem tem estrutura quase de romance de formação, mas filtrado pela lente do absurdo. Cada cidade por onde passa, Londres, Lisboa, Paris, funciona como uma etapa de amadurecimento, não apenas individual, mas político. O mundo que Bella descobre é o mesmo que tenta domesticá-la, e a cada tentativa de submissão ela responde com uma forma inédita de prazer ou descoberta. O sexo, tão presente na narrativa, é tratado não como provocação, mas como campo de experimentação do próprio ser. Não há vergonha, nem redenção; há apenas o desejo como expressão de vitalidade. O corpo, tantas vezes tratado como prisão, aqui se torna ferramenta de pensamento.
É impossível não perceber, sob a superfície surrealista, o espelho cruel da nossa própria época. Pobres Criaturas fala de uma mulher que recusa ser moldada, e, por isso, incomoda. Em tempos em que a liberdade feminina ainda é vista como ameaça, Bella é uma figura que escandaliza justamente porque não pede desculpas. O riso que o filme provoca é incômodo; o grotesco serve de disfarce para um discurso feroz sobre poder, sexualidade e moralidade. Lanthimos faz do exagero um espelho: quanto mais extravagante o cenário, mais evidente a mediocridade das normas que o sustentam.
Emma Stone, em sua atuação mais ousada, dissolve qualquer fronteira entre inocência e sabedoria. Sua Bella é simultaneamente criança, filósofa, hedonista e mártir, um ser que aprende o mundo pela via do espanto. Willem Dafoe, como o criador deformado, encarna a razão científica levada à loucura da posse. Mark Ruffalo, por sua vez, oferece uma caricatura irresistível da masculinidade vaidosa que confunde libertinagem com liberdade. Nenhum deles é vilão ou santo; todos orbitam o mesmo campo de forças entre desejo e controle. É essa ausência de moral binária que torna o filme tão desconcertante: ninguém é redimido, e talvez seja justamente isso que o torna humano.
Há uma dimensão estética em “Pobres Criaturas” que ultrapassa o mero virtuosismo técnico. O uso do preto e branco que se dissolve em cores saturadas não é apenas um efeito visual, mas uma metáfora sobre a consciência que desperta. A cada nova experiência de Bella, o mundo ganha intensidade cromática, como se o conhecimento alterasse a própria matéria das coisas. A fotografia curva-se à psique da protagonista, e a trilha sonora opera como extensão de sua curiosidade: ora grandiosa, ora ridiculamente mundana. Tudo parece respirar a mesma dualidade entre o sublime e o grotesco.
“Pobres Criaturas” não dá respostas, e é por isso que ele é essencial. Ao transformar a fábula em laboratório filosófico, Lanthimos desmonta a ideia de que a humanidade é definida pela razão. O que define Bella é o espanto diante da existência, a coragem de escolher mesmo quando escolher dói. Sua liberdade não é romântica nem heroica; é uma conquista diária, imperfeita e às vezes violenta. E talvez resida aí, nesse direito de tropeçar sem pedir licença, a lição mais urgente que o filme oferece.
Mais do que um conto sobre uma mulher reconstruída, “Pobres Criaturas” é sobre reconstruir o próprio olhar. Ver o mundo através de Bella é perceber o quanto naturalizamos as prisões que nos cercam. O filme é bizarro, sensual, cruel e irresistivelmente lúcido. Um espelho distorcido onde, a cada risada desconfortável, o espectador descobre que talvez o monstro, o verdadeiro, nunca tenha sido ela.
★★★★★★★★★★