Brutal, poético e inspirado em Hamlet: o épico viking que está na Netflix Divulgação / Focus Feature

Brutal, poético e inspirado em Hamlet: o épico viking que está na Netflix

Há algo de ancestral em “O Homem do Norte”. Não apenas por sua ambientação viking ou pelo rigor com que Robert Eggers reconstrói uma era perdida, mas pela forma como o filme se comporta como um mito em combustão. Cada quadro parece gravado em pedra, como se o cinema, essa arte efêmera, tentasse ser eterno por um instante. E é justamente esse embate entre o humano e o arcaico, entre a carne e o símbolo, que faz do longa uma experiência visceral e hipnótica. O que se vê não é apenas uma história de vingança: é um ritual fílmico sobre o preço de obedecer à própria lenda.

Eggers não se contenta em narrar, ele invoca. Desde a primeira cena, há uma brutalidade quase sagrada no ar. O protagonista, um príncipe traído que jura vingar o assassinato do pai, é moldado como um eco de Hamlet e das sagas islandesas. Mas aqui, o destino não é um dilema filosófico: é um instinto animal. O herói, agora reduzido a fera, persegue sua missão com a devoção de quem esqueceu o porquê da dor. Alexander Skarsgård dá corpo a essa ruína com uma intensidade primitiva: o olhar dele é o de alguém que já se perdeu antes mesmo de começar a lutar. Sua jornada é circular, como o próprio mito, quanto mais se aproxima da vingança, mais se distancia da humanidade.

“O Homem do Norte” se equilibra entre o real e o sobrenatural sem precisar escolher um lado. As visões proféticas, os rituais de sangue, a aparição da valquíria que atravessa o céu: tudo parece nascer da psicose de um homem que confunde fé com fúria. Eggers filma esses delírios como se fossem parte do mundo físico, borrando os limites entre o sagrado e o insano. O resultado é uma atmosfera que alterna a brutalidade da terra com o delírio do mito, em um cinema que transpira suor e transcendência ao mesmo tempo.

A estética é de uma solenidade quase arcaica. A fotografia de Jarin Blaschke recusa a beleza confortável: a luz natural torna os rostos sujos, os corpos ásperos, os horizontes melancólicos. O frio não é cenário, é personagem. Cada névoa, cada respiração condensada, reforça a sensação de que o herói está sendo engolido pela própria promessa. Eggers filma a violência como um gesto ritual, sem glamour nem piedade, até que o sangue se torne uma espécie de liturgia. É uma visão que desconcerta. Um espetáculo grandioso e, ao mesmo tempo, profundamente íntimo.

O diretor também sabe quando romper o silêncio. A trilha sonora, feita de tambores e urros, parece acompanhar o batimento cardíaco do filme, guiando o espectador por uma experiência quase xamânica. Não há sentimentalismo, mas há tragédia. Porque, ao fim, a promessa de vingança revela-se uma prisão. A brutalidade que sustentou o herói acaba por consumi-lo, e o mito, enfim, devora o homem. A cena final, duas silhuetas duelando à beira de um vulcão, sintetiza toda a lógica do filme: o fogo purifica e destrói, sem distinção.

Por trás da violência e da pompa épica, “O Homem do Norte” é um filme sobre a impossibilidade de retorno. O homem que parte para vingar o pai não encontra o inimigo. Encontra a si mesmo, deformado pela crença de que cumprir o destino é o mesmo que viver. A vingança deixa de ser justiça e se torna identidade. Quando finalmente a cumpre, o herói percebe o que Eggers vem dizendo desde o primeiro frame: não existe glória no mito, apenas silêncio.

É tentador assistir a “O Homem do Norte” como um épico nórdico clássico, mas ele é outra coisa: uma elegia à masculinidade trágica, ao heroísmo que apodrece no tempo. Eggers transforma uma saga de sangue e ferro em uma meditação sobre o que resta do homem quando o mito termina. Entre a selvageria e o sublime, o diretor encontra algo raro: um cinema que olha para o passado com a fúria do presente. Um filme que não quer apenas mostrar o nascimento da lenda, mas o momento exato em que ela começa a morrer.

Filme: O Homem do Norte
Diretor: Robert Eggers
Ano: 2022
Gênero: Ação/Aventura/Drama/Épico/Fantasia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★