Há algo de ancestral em “O Homem do Norte”. Não apenas por sua ambientação viking ou pelo rigor com que Robert Eggers reconstrói uma era perdida, mas pela forma como o filme se comporta como um mito em combustão. Cada quadro parece gravado em pedra, como se o cinema, essa arte efêmera, tentasse ser eterno por um instante. E é justamente esse embate entre o humano e o arcaico, entre a carne e o símbolo, que faz do longa uma experiência visceral e hipnótica. O que se vê não é apenas uma história de vingança: é um ritual fílmico sobre o preço de obedecer à própria lenda.
Eggers não se contenta em narrar, ele invoca. Desde a primeira cena, há uma brutalidade quase sagrada no ar. O protagonista, um príncipe traído que jura vingar o assassinato do pai, é moldado como um eco de Hamlet e das sagas islandesas. Mas aqui, o destino não é um dilema filosófico: é um instinto animal. O herói, agora reduzido a fera, persegue sua missão com a devoção de quem esqueceu o porquê da dor. Alexander Skarsgård dá corpo a essa ruína com uma intensidade primitiva: o olhar dele é o de alguém que já se perdeu antes mesmo de começar a lutar. Sua jornada é circular, como o próprio mito, quanto mais se aproxima da vingança, mais se distancia da humanidade.
“O Homem do Norte” se equilibra entre o real e o sobrenatural sem precisar escolher um lado. As visões proféticas, os rituais de sangue, a aparição da valquíria que atravessa o céu: tudo parece nascer da psicose de um homem que confunde fé com fúria. Eggers filma esses delírios como se fossem parte do mundo físico, borrando os limites entre o sagrado e o insano. O resultado é uma atmosfera que alterna a brutalidade da terra com o delírio do mito, em um cinema que transpira suor e transcendência ao mesmo tempo.
A estética é de uma solenidade quase arcaica. A fotografia de Jarin Blaschke recusa a beleza confortável: a luz natural torna os rostos sujos, os corpos ásperos, os horizontes melancólicos. O frio não é cenário, é personagem. Cada névoa, cada respiração condensada, reforça a sensação de que o herói está sendo engolido pela própria promessa. Eggers filma a violência como um gesto ritual, sem glamour nem piedade, até que o sangue se torne uma espécie de liturgia. É uma visão que desconcerta. Um espetáculo grandioso e, ao mesmo tempo, profundamente íntimo.
O diretor também sabe quando romper o silêncio. A trilha sonora, feita de tambores e urros, parece acompanhar o batimento cardíaco do filme, guiando o espectador por uma experiência quase xamânica. Não há sentimentalismo, mas há tragédia. Porque, ao fim, a promessa de vingança revela-se uma prisão. A brutalidade que sustentou o herói acaba por consumi-lo, e o mito, enfim, devora o homem. A cena final, duas silhuetas duelando à beira de um vulcão, sintetiza toda a lógica do filme: o fogo purifica e destrói, sem distinção.
Por trás da violência e da pompa épica, “O Homem do Norte” é um filme sobre a impossibilidade de retorno. O homem que parte para vingar o pai não encontra o inimigo. Encontra a si mesmo, deformado pela crença de que cumprir o destino é o mesmo que viver. A vingança deixa de ser justiça e se torna identidade. Quando finalmente a cumpre, o herói percebe o que Eggers vem dizendo desde o primeiro frame: não existe glória no mito, apenas silêncio.
É tentador assistir a “O Homem do Norte” como um épico nórdico clássico, mas ele é outra coisa: uma elegia à masculinidade trágica, ao heroísmo que apodrece no tempo. Eggers transforma uma saga de sangue e ferro em uma meditação sobre o que resta do homem quando o mito termina. Entre a selvageria e o sublime, o diretor encontra algo raro: um cinema que olha para o passado com a fúria do presente. Um filme que não quer apenas mostrar o nascimento da lenda, mas o momento exato em que ela começa a morrer.
★★★★★★★★★★