Duas horas de gargalhadas leves — a comédia mais inteligente que você vai ver neste fim de semana na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Duas horas de gargalhadas leves — a comédia mais inteligente que você vai ver neste fim de semana na Netflix

Um casal com anos de casamento tenta manter a rotina em ordem quando as contas aumentam, a saúde cobra atenção e as frustrações ganham voz. Entre filhos que crescem, pais que exigem cuidado e negócios que ameaçam desandar, a convivência vira campo de negociações diárias. Nesse cenário, “Bem-vindo aos 40” apresenta duas pessoas que ainda se amam, mas já não se reconhecem em tudo o que foram, e menos ainda no que dizem querer ser. Dirigido por Judd Apatow e estrelado por Paul Rudd e Leslie Mann, o longa usa comicidade e incômodo para acompanhar esse par em espiral de cobranças e afetos mal distribuídos.

Pete, vivido por Rudd, é um homem que prefere a piada ao enfrentamento. A procrastinação o protege de decisões difíceis, mas amplia os buracos que tenta esconder. Debbie, personagem de Mann, busca controle como medida de autopreservação: organiza a casa, vigia finanças, tenta guiar as filhas e ainda sustentar o próprio negócio. O atrito entre esses temperamentos acende discussões que parecem pequenas, até revelarem um acúmulo de desgastes. Quando entram em cena as demandas dos pais e os impasses profissionais, o equilíbrio doméstico vacila. Em vez de acontecimentos espetaculares, o filme aposta na repetição do cotidiano, onde a exaustão corrói a paciência e expõe verdades constrangedoras.

Apatow trabalha com conversas longas, pausas que comprometem a fachada e um humor que prefere o constrangimento à piada pronta. O riso vem de confissões mal colocadas, justificativas que se desmancham e tentativas de autopiedade que encontram resistência. Essa escolha favorece a sensação de vida em curso, como se cada reunião familiar, ida ao médico ou encontro de trabalho trouxesse um espelho incômodo. Em vez de transformar os personagens em alvos fáceis, o diretor acompanha seus desvios, deixando que decisões tortas gerem consequências plausíveis. O tempo esticado serve para iluminar falhas de caráter e hábitos que ninguém admite com orgulho, mas que se repetem quando a pressão aperta.

O elenco sustenta esse desenho emocional com segurança. Mann alterna controle e vulnerabilidade sem caricatura, deixando visível a ansiedade que se esconde por trás de regras e listas. Rudd segue na trilha do charme que falha na hora certa, compondo um sujeito simpático que posterga escolhas e coleciona desculpas. Em torno deles, pais e filhas completam o mosaico de dependências e cobranças. As figuras paternas entram como forças contraditórias: uma presença que drenou recursos e outra que retorna com cobranças que soam tardias. As crianças, por sua vez, trazem para a mesa o desgaste do convívio com telas, tarefas e limites imprecisos, tema que o filme trata como parte natural da vida familiar contemporânea.

Há um comentário social evidente: a história se passa em um ambiente confortável, com acesso a serviços, médicos e tempo para conversas que muitos não têm. Ainda assim, o conforto não resolve o mal-estar. A relação entre privilégio e ansiedade é observada com ironia discreta, sem absolvições. Personagens que frequentam cafés charmosos também negociam dívidas e inventam desculpas para não encarar planilhas. O consumo saudável convive com excessos, a retórica da vida equilibrada tropeça na fadiga e nos impulsos mais infantis. Essa contradição aproxima a comédia do retrato social, sem transformar o cenário em argumento moral.

Na forma, a câmera se mantém discreta. Planos médios e closes acompanham o bate-boca e o silêncio após a fala atravessada. A edição privilegia continuidade, permitindo que o desconforto se acumule até virar piada ou confissão. A trilha, com canções que misturam melancolia e leveza, não invade a cena, apenas sublinha os estados emocionais. Quando o ritmo cede, a sensação é de excesso, como se nem todas as ideias precisassem permanecer. Ainda assim, os momentos que funcionam carregam uma veracidade rara, visível no modo como um elogio mal calculado vira discussão, ou como uma conversa sobre trabalho desagua em disputa sobre quem faz mais pela casa.

O filme se alonga, e Apatow nem sempre cobra responsabilidade dos homens com a severidade que reserva às mulheres. Em alguns trechos, o roteiro adota um olhar condescendente para a imaturidade masculina e pesa a mão na cobrança sobre a personagem de Mann. Esse desequilíbrio, porém, também serve para revelar o que o próprio universo retratado normaliza. O mal-estar de Debbie não nasce do nada; vem de uma soma de esquecimentos, de promessas repetidas e de pequenos atalhos que aliviam agora e complicam depois. A graça cresce quando essas fissuras aparecem, não quando a história procura culpados definitivos.

A graça mais duradoura está nos gestos cotidianos: um pedido de desculpas sem jeito, um abraço interrompido por uma notificação, uma dança tola na cozinha. São momentos que não pedem aplauso, mas ficam na memória por parecerem verdadeiros. O filme registra como o casal tenta reencenar juventudes que não voltam e, ao mesmo tempo, aprender a gostar do que a idade traz de bom: alguma experiência, menos pressa, mais vocabulário para nomear o desgaste. Nem sempre dá certo, e é aí que a comicidade trabalha melhor, quando a tentativa fracassa de maneira reconhecível.

“Bem-vindo aos 40” oferece um retrato da meia-idade que não depende de reviravoltas. A aposta está na observação insistente e no convite a reconhecer hábitos que corroem e também gestos que sustentam. Rudd e Mann constroem uma parceria crível, com tropeços e respiros. Apatow, por sua vez, registra esse vaivém com atenção suficiente para fazer do tédio e da irritação material cômico. O desfecho evita golpes baixos, mas prefere um horizonte de continuidade a uma virada redentora. A vida segue, com novas contas, novas promessas e a mesma disposição de negociar, dia após dia, o que ainda vale a pena preservar.

Filme: Bem-vindo aos 40
Diretor: Judd Apatow
Ano: 2012
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★