Um filme que vai te fazer rir, pensar e se surpreender — tudo em 90 minutos, na Netflix Divulgação / H2O Films

Um filme que vai te fazer rir, pensar e se surpreender — tudo em 90 minutos, na Netflix

Uma publicitária, acostumada a engolir contrariedades no trabalho e em casa, subitamente se vê incapaz de mentir e de suavizar opiniões depois de um ritual místico. Em “Uma Mulher Sem Filtro”, refilmagem de um sucesso latino-americano dirigida por Arthur Fontes, Fabiula Nascimento interpreta Bia, cuja nova franqueza provoca curto-circuitos em reuniões, amizades e casamento, enquanto Camila Queiroz, Samuel de Assis, Emílio Dantas e Júlia Rabello orbitam esse epicentro de sinceridade compulsória. A narrativa acompanha os efeitos em cadeia dessa mudança de comportamento e observa como a sociedade reage quando a cordialidade deixa de funcionar como lubrificante.

Fontes escolhe uma comédia de costumes com sotaque urbano e referências digitais, adaptada à dinâmica brasileira, sem depender do reconhecimento do original. O interesse não está na façanha sobrenatural em si, mas na lista de pequenos constrangimentos que se acumulam em ambientes onde a diplomacia vale mais do que o conteúdo. Escritórios abertos, eventos corporativos, grupos de mensagens e mesas de jantar formam o mapa por onde Bia circula, e cada parada testa limites de paciência, hierarquia e lealdade.

Fabiula Nascimento compõe uma protagonista que não confunde franqueza com agressão gratuita. O humor nasce de pausas, olhares e da dificuldade alheia em lidar com respostas sem verniz. Em vez de sarcasmo constante, a atriz aposta em pequenos deslocamentos: um comentário objetivo que desmonta jargões, uma pergunta literal que revela promessas vazias, um silêncio que recusa pedidos de desculpa automáticos. Esse manejo de tempo sustenta a graça das situações sem reduzir Bia à caricatura de pessoa rude, o que preserva espaço para nuances afetivas.

Camila Queiroz transforma a gestora influencer em figura carismática, sedutora e afiada, mais perigosa por aparentar doçura do que por hostilidade aberta. Samuel de Assis encontra o ponto de vulnerabilidade do interesse amoroso sem cair na função de tutor moral. Emílio Dantas ilustra a zona cinzenta do companheirismo acomodado, enquanto Júlia Rabello expressa a competitividade mascarada de parceria. O conjunto mantém o foco nas relações, e coadjuvantes menores contribuem com observações curtas que explicam por que a franqueza de Bia não é recebida como simples virtude cívica.

Arthur Fontes filma com agilidade. A câmera encurta corredores, comprime salas envidraçadas e destaca a sensação de exposição constante. A montagem favorece reações, permitindo que piadas se completem no rosto de quem ouviu a verdade fora de hora. O desenho de som usa notificações, suspiros e cochichos para registrar a fadiga diária que antecede a explosão de sinceridade. A trilha privilegia o pop radiofônico e evita a sublinhação emocional excessiva. Tudo se mantém em registro leve, o suficiente para que o riso conviva com a pontada de reconhecimento.

O roteiro prefere o inventário das microagressões a grandes viradas. Chefes que acreditam orientar enquanto minam autonomia, colegas que disfarçam competição sob o nome de sororidade, parceiros que terceirizam cuidado aparecendo quando lhes convém: a comédia nasce do incômodo real desses gestos. Há frases que soam como aforismos, e algumas situações beiram a simplificação moral para facilitar o golpe cômico. Ainda assim, o filme evita demonizar o mundo ao redor e permite que contradições sobrevivam, como quando a protagonista percebe que sinceridade absoluta também pode machucar quem ela ama.

O elemento místico funciona como gatilho narrativo e justificativa para a mudança brusca, mas rapidamente cede o protagonismo ao cotidiano. A benção — ou maldição — de dizer tudo sem filtro não é tratada como punição cômica; vira ferramenta para revelar códigos de convivência que favorecem sempre os mesmos. Ao tratar a mitologia com espírito lúdico, o filme evita a chacota fácil e preserva certa ternura com crenças populares. O interesse está nos efeitos práticos dessa intervenção sobre a rotina de Bia, e não no mistério sobrenatural.

À medida que a história se aproxima do desfecho, a narrativa passa a reacomodar relações. O roteiro reduz a acidez e privilegia gestos conciliatórios, o que pode frustrar quem esperava consequências mais duras. A escolha não invalida o caminho anterior, mas retira parte da aspereza que alimentava os melhores momentos. Ainda assim, o encerramento respeita a hipótese central: a franqueza compulsória é insustentável como projeto de vida, embora sirva para iluminar lugares onde a boa educação esconde abusos. O conflito principal migra do plano público para decisões íntimas que exigem maturidade.

Como comédia popular, a produção confia em timing, elenco conhecido e situações reconhecíveis. A graça não está em trocadilhos ou tiradas agressivas, mas em um tipo de observação que qualquer pessoa que já assistiu a uma reunião improdutiva identifica de imediato. Ao preferir esse caminho, Arthur Fontes se alinha a um filão recente que busca falar de trabalho, redes e autoestima com leveza e sem travas moralistas. O resultado mantém acessibilidade e oferece margem para risos desconfortáveis que persistem depois da sessão, inclusive entre espectadores que evitam confrontos.

“Uma Mulher Sem Filtro” coloca na mesa uma questão antiga em roupagem contemporânea: quem paga a conta da sinceridade quando ela rompe pactos tácitos de convívio? Ao optar por olhar de perto os pequenos gestos e não martelar lições, o filme alcança um retrato reconhecível do cansaço urbano e do custo emocional de performar gentileza. Entre uma piada e um constrangimento, resta a possibilidade de uma vida menos protocolar. Resta saber quanto cada um está disposto a perder para não mentir em um país que recompensa a cordialidade aparente.

Filme: Uma Mulher Sem Filtro
Diretor: Arthur Fontes
Ano: 2025
Gênero: Comédia
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★