A comédia romântica espanhola mais assistida da história da Netflix — e com razão Divulgação / Netflix

A comédia romântica espanhola mais assistida da história da Netflix — e com razão

Um rapaz cresce acreditando que foi agraciado com uma vantagem rara: ao beijar alguém pela primeira vez, enxerga, como relâmpagos, cenas do que viverá adiante com aquela pessoa. Essa visão não é vaga; inclui entusiasmos, tiques cotidianos, crises e despedidas. A habilidade parece valiosa no início, mas, com o tempo, transforma encontros em caminhos batidos. O protagonista passa a encerrar relações no primeiro sinal de tédio anunciado por sua própria previsão. “Amor ao Primeiro Beijo”, dirigido por Alauda Ruiz de Azúa e estrelado por Álvaro Cervantes, Silvia Alonso, Susana Abaitua e Gorka Otxoa, acompanha a reviravolta que ocorre quando um beijo inesperado revela a maior compatibilidade de sua vida com alguém comprometida com seu melhor amigo, ponto de partida para um impasse afetivo e ético.

O filme apresenta o triângulo com humor brando e atenção ao cotidiano. As primeiras sequências mostram o protagonista no trabalho, com amigos e em encontros que terminam assim que as visões indicam desgaste futuro. A rotina evidencia um padrão: evitar frustrações virou hábito, e a antecipação serve de escudo contra responsabilidade emocional. A aparição da mulher que ele enxerga como parceira ideal quebra o ciclo e exige uma escolha: respeitar a amizade ou perseguir a promessa de afinidade que sua habilidade anuncia, mesmo sem garantias sobre o que isso custará nos dias seguintes.

Alauda Ruiz de Azúa filma conversas em bares, restaurantes e apartamentos com câmera próxima, interessada em olhares e hesitações. A fotografia prefere luz suave e cores discretas, o que favorece a observação de sinais que interferem na confiança entre amigos e possíveis casais. A edição evita gritos dramáticos e prioriza cortes que acompanham mensagens trocadas, chamadas adiadas e silêncios calculados. O dom do protagonista aparece como dispositivo narrativo simples: um beijo, um corte para um possível amanhã, um retorno ao presente que cobra atitude.

Álvaro Cervantes compõe o herói romântico relutante com leve ironia. Seu jeito de esquivar conflitos mostra um homem acostumado a gerenciar expectativas a partir de imagens rápidas, não de conversas longas. Silvia Alonso dá firmeza e humor à mulher que ele considera ideal; sua personagem tem trabalho, amigos e convicções, e não se impressiona com promessas de destino. Susana Abaitua, como uma ex com quem ele mantém encontros ocasionais, oferece um reflexo crítico: a repetição de hábitos que ele insiste em não reconhecer. Gorka Otxoa interpreta o amigo que se vê sob ameaça, equilibrando simpatia e mágoa, o que torna crível a ferida aberta.

A premissa flerta com o fantástico, mas permanece ancorada em consequências concretas. O filme explora a pergunta central: saber de antemão o que um romance “trará” ajuda ou atrapalha? O protagonista, ao confiar nas previsões, reduz a margem do acaso e da negociação que sustenta vínculos. O resultado é uma vida amorosa eficiente e pobre de experiências transformadoras. O encontro com a namorada do amigo expõe de modo direto o limite desse cálculo, pois coloca em risco algo que não depende apenas de beijos, mas de história compartilhada e confiança acumulada.

A cidade contemporânea funciona como amplificador. Aplicativos, calendários lotados e conversas por mensagens encurtam decisões, e a pressa reforça o impulso de cortar caminhos. A diretora observa esses hábitos com naturalidade e mostra como eles atravessam o trio, ora facilitando fugas, ora pedindo coragem para conversas difíceis. O protagonista percebe que o dom, antes visto como proteção, virou muleta. Quando tenta agir “corretamente”, descobre que correção abstrata não se sustenta sem escuta atenta, sobretudo quando o futuro supostamente conhecido ameaça destruir amizades de anos.

O humor nasce de detalhes reconhecíveis: conselhos mal aplicados, encontros agendados em cima da hora, tentativas de levar a vida como se nenhuma fronteira estivesse sendo cruzada. A graça não serve para encobrir danos; funciona como modo de lidar com a ansiedade produzida pela certeza de que alguém sairá magoado. Em várias cenas, o protagonista hesita antes de beijar, como se evitasse acionar a visão que definirá passos seguintes. Esse gesto simples mostra o rastro de culpa já presente no corpo, um dado que empurra o filme para um registro mais humano e menos esquemático.

A trilha musical é econômica e se limita a marcar passagens entre encontros, mensagens e novos testes de afinidade. Canções entram e saem sem ditar sentimentos, deixando espaço para que as palavras façam o trabalho de avançar os impasses. A direção valoriza elipses que mantêm o interesse: um corte entre um beijo e flashes de futuro; uma volta ao presente com rostos incertos; uma conversa interrompida que se prolonga por dias. Essa dinâmica sustenta a curiosidade sobre como o trio pretende administrar a crise sem recorrer a soluções milagrosas.

O roteiro, assinado por Cristóbal Garrido e Adolfo Valor, apresenta regras claras para o dom e investe na lógica dos personagens. O protagonista tende a fugir; a mulher tida como ideal rejeita atalhos; o amigo luta para preservar o que construiu. Não há vilões chapados: há adultos tentando manter dignidade quando a realidade aponta para um impasse doloroso. A honestidade custa empregos, festas perdidas, mudanças de casa e conversas com familiares, detalhes que dão concretude ao conflito e lembram que romances não existem fora da vida prática.

O elenco secundário contribui com pequenas intervenções que iluminam o tema. Colegas de trabalho encorajam atalhos, um terapeuta improvisado aconselha prudência, conhecidos comentam a história como se fosse fofoca inofensiva. Esses elementos mostram como o ambiente social incentiva respostas rápidas e, ao mesmo tempo, cobra consequências quando as escolhas deixam marcas públicas. A direção mantém o foco nos três envolvidos, mas não ignora a plateia que cerca qualquer crise amorosa em tempos de redes e compartilhamentos constantes.

“Amor ao Primeiro Beijo” prefere perguntas a sentenças. A comédia se sustenta quando o riso convive com a percepção de risco real, e o romance ganha corpo ao admitir que compatibilidade não é garantia de permanência. A habilidade de prever o amanhã perde força diante da tarefa de sustentar uma conversa difícil hoje. Resta, para os personagens, decidir até onde vale ir para não trair quem se ama e quem esteve por perto antes do primeiro beijo.

Filme: Amor ao Primeiro Beijo
Diretor: Alauda Ruiz de Azúa
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★