Numa cidade costeira do sul dos Estados Unidos, uma menina cresce praticamente sozinha em um casebre no brejo, aprende a sobreviver observando marés, aves e plantas, e se acostuma a ser vista como estranha. Quando a vida adulta chega, essa mesma jovem passa a lidar com a curiosidade local, com a possibilidade de afeto e com a sombra do julgamento público. Em meio a essas expectativas, a morte de um rapaz popular da região provoca uma investigação que arrasta seu nome para o centro da atenção. “Um Lugar Bem Longe Daqui”, dirigido por Olivia Newman, adapta o livro homônimo de Delia Owens, publicado no Brasil com o mesmo título, e traz Daisy Edgar-Jones como Kya, ao lado de Taylor John Smith e Harris Dickinson. O filme acompanha a trajetória de uma mulher que aprende cedo a contar mais com o terreno úmido do que com os vizinhos.
O enredo alterna dois tempos: o crescimento de Kya, marcado por ausências e pequenos gestos de auxílio, e o presente, em que a polícia tenta reconstruir as últimas horas do rapaz morto. Essa alternância mantém o foco na formação emocional da protagonista enquanto expõe como a comunidade a enxerga. A direção investe em planos que valorizam vento, água e luz filtrada, mostrando o brejo como espaço de sustento e abrigo. Daisy Edgar-Jones conduz a personagem com economia de gestos, dando a ver uma mistura de timidez e firmeza que se torna mais nítida quando a convivência com a cidade produz novas regras para seu cotidiano. A relação com a leitura e o desenho fornece um caminho de autonomia intelectual que ajuda a ordenar o mundo à sua volta, sem discursos didáticos.
A presença de dois interesses afetivos, vividos por Taylor John Smith e Harris Dickinson, ordena escolhas que terão peso adiante. Um deles se aproxima com delicadeza e incentivo, o outro apresenta sedução misturada a controle. O contraste funciona como comentário sobre a diferença entre cuidado e posse, e sobre a facilidade com que um boato pode virar sentença num lugar onde laços antigos valem mais do que evidências. A cidade prefere a versão que confirma o que ela já pensa sobre quem nasceu fora do centro, e a protagonista precisa decidir quando se expor e quando recolher forças na paisagem que conhece desde menina.
O tribunal aparece como palco onde se mede reputação. Ali, o advogado interpretado por David Strathairn enfrenta uma plateia predisposta a culpar a jovem. A cena pública do julgamento coloca em choque dois saberes: o conhecimento empírico aprendido no pântano e o discurso formal que dita verdades legais. A montagem cruza depoimentos e recordações para que o espectador entenda como a imagem de Kya foi construída ao longo dos anos, do apelido depreciativo ao tratamento desigual nas lojas da cidade. A pergunta que se coloca é menos “o que aconteceu naquela noite” e mais “quem merece ser ouvido quando uma versão oficial se consolida”.
Olivia Newman se interessa por rotinas: coleta de conchas, observação de aves, catalogação paciente. Esses procedimentos dão ritmo ao filme e ajudam a explicar por que a protagonista se torna pesquisadora do lugar onde vive. A natureza não aparece como postal; serve de ferramenta de subsistência, de linguagem e de defesa. Quando a maré sobe e apaga rastros, o gesto natural é também comentário social sobre o desejo de permanecer invisível para evitar hostilidade. A trilha musical prefere sublinhar emoções com discrição, enquanto a fotografia aposta em luz dourada e névoa leve, escolhas que reforçam a sensação de tempo suspenso que cerca o brejo.
Adaptado de um fenômeno editorial, “Um Lugar Bem Longe Daqui” precisa condensar episódios e simplificar alguns arcos secundários. A decisão preserva o núcleo: a busca por pertencimento diante de um ambiente que insiste em definir a protagonista pelo estigma. O filme evita explicações psicológicas extensas e confia em imagens recorrentes para marcar etapas do crescimento. Quando a protagonista publica seus estudos, ganha visibilidade e renda, mas continua a carregar o selo de “diferente”, sinal de que status e aceitação não caminham lado a lado. Esse dado social molda conflitos e explica por que a investigação criminal encontra terreno fértil para suspeitas.
A performance de Daisy Edgar-Jones sustenta longos trechos de silêncio, e a escolha de enquadramentos próximos enfatiza microreações. A atriz compõe uma personagem que observa antes de agir, e essa prioridade do olhar se reflete na encenação, com movimentos de câmera que acompanham hesitações em vez de buscar efeitos fáceis. Taylor John Smith oferece contraponto de gentileza e limitação, enquanto Harris Dickinson traduz charme que se converte em pressão. David Strathairn traz sobriedade ao advogado que precisa explicar o óbvio: reputação não constitui prova. A soma desses trabalhos delimita um mapa afetivo onde cada gesto tem peso reconhecível.
O filme encontra soluções visuais para a passagem do tempo: mudanças no casebre, na roupa, no arranjo do material de pesquisa. Esses sinais funcionam como marcadores de avanço pessoal. Já a cidade permanece quase igual, com os mesmos olhares tortos e as mesmas fofocas repetidas. O contraste reforça a ideia de que o crescimento de Kya se dá apesar do entorno. As paisagens aquáticas cumprem papel narrativo, não só estético, pois indicam rotas de fuga, pontos de encontro e barreiras naturais. Quando a maré baixa, aparecem atalhos; quando sobe, impõe espera.
A condução de Olivia Newman privilegia clareza. A alternância temporal não confunde e serve para ligar causa e efeito, evitando atalhos expositivos longos. Há espaço para contemplação, com pausas que permitem que o ambiente fale por si. Esse cuidado sustenta a coerência interna da obra e prepara o terreno para o embate no tribunal. Os diálogos evitam grandiloquência e chegam limpos, com vocabulário simples, fiel ao recorte social mostrado. O filme se mantém atento à diferença de classe e à linguagem corporal que separa quem domina os códigos públicos de quem aprendeu a viver em outra gramática.
A comparação com o livro traz lembrança de passagens mais ásperas que aqui ficam suavizadas. Em contrapartida, a adaptação ganha concisão nas relações centrais e amplia o papel do ambiente como força modeladora. Esse equilíbrio permite que a história funcione para quem conhece a origem literária e para quem chega pela primeira vez. A escolha de encerrar conflitos sem didatismo total deixa espaço para interpretações sobre sobrevivência, culpa e responsabilidade. A dúvida que permanece é menos policial e mais ética: que preço se paga para continuar existindo quando a cidade define quem merece ser visto como parte dela.
Como retrato de pertencimento e exclusão, “Um Lugar Bem Longe Daqui” observa gestos pequenos, mostra como o entorno educa e pergunta quem tem autoridade para decidir a versão dos fatos. A personagem principal encontra linguagem na ciência e encontra refúgio no pântano, duas formas de organização que dispensam aplauso alheio. O filme prefere a constância do vento à rapidez da sentença, o que mantém viva a tensão entre vida privada e exigência pública. Ao apagar as luzes, segue aberta a questão sobre quem pode traçar o mapa de uma vida quando a maré insiste em redesenhar a costa.
★★★★★★★★★★