O filme que chocou Hollywood — e tem algumas das maiores reviravoltas da história do cinema — está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

O filme que chocou Hollywood — e tem algumas das maiores reviravoltas da história do cinema — está na Netflix

O policial ambientado na Flórida costuma explorar a distância entre fachadas reluzentes e decisões tomadas por baixo do tapete. Esse contraste orienta a leitura de “Garotas Selvagens”, dirigido por John McNaughton, com Matt Dillon, Denise Richards, Neve Campbell, Kevin Bacon e Bill Murray. O longa parte de uma acusação que abala uma escola e repercute na cidade, abrindo um campo de batalha em que prestígio, dinheiro e desejo funcionam como armas de pressão.

A história desloca rapidamente a discussão do espaço escolar para a esfera pública. Advogados, policiais e famílias influentes entram em cena e transformam versões em mercadoria, negociada conforme a audiência e o poder de cada envolvido. A acusação serve como fósforo em um ambiente já saturado de rivalidades e ambições. Sem revelar desfechos, pode-se dizer que cada nova informação altera a percepção sobre culpas e inocências, pois as alianças se recompõem de acordo com a vantagem imediata.

McNaughton escolhe um tom de malícia controlada. A câmera valoriza piscinas, marinas e salões impecáveis, mas mantém um olhar desconfiado para o custo moral dessa ostentação. O ritmo favorece viradas que chegam em momentos calculados, quando uma aparente estabilidade começa a se formar. A trilha sonora e os sons ambientais colaboram para o clima de sedução e risco, enquanto a fotografia aposta em luz intensa e cores saturadas que reforçam a dupla face do paraíso turístico. O resultado é um cenário onde tudo convida ao prazer e tudo tem preço.

O elenco ajuda a sustentar o jogo de aparências. Matt Dillon projeta simpatia treinada, como alguém que aprendeu a modular o discurso conforme o interlocutor. Denise Richards constrói uma herdeira acostumada a vencer pela imagem e pelo sobrenome, mas com fome de reconhecimento. Neve Campbell, com presença discreta e firme, apresenta uma jovem que observa, calcula e fala apenas quando a palavra pode render dividendos. Kevin Bacon encarna um investigador correto no papel, seduzido por atalhos que prometem soluções rápidas. Bill Murray, advogado disposto a vender confiança a quem pagar, atua no limite da farsa e do comentário social, lembrando que o sistema jurídico recompensa quem sabe representar indignação.

“Garotas Selvagens” dialoga com o erotismo de thrillers dos anos 1990, mas desloca o eixo do controle. As personagens femininas não são apenas objeto do desejo alheio; dominam cartas do baralho e decidem quando expor ou ocultar informação. Isso não elimina o olhar masculino predominante na época, porém introduz contrapeso que impede leituras simplistas. O poder circula e, ao circular, desmascara hierarquias locais, mostrando a velocidade com que reputações desabam quando a narrativa muda de dono.

O filme também comenta a economia de favores que regula a vida na cidade. Empresários influentes financiam instituições, autoridades medem a reação da imprensa antes de agir, profissionais do direito avaliam não apenas provas, mas também danos de imagem. O dinheiro compra tempo, silêncio e versões mais palatáveis. Quem não possui capital simbólico compensa com astúcia, alianças oportunas e coragem para blefar. Nesse tabuleiro, a moral é elástica e a justiça aparece como cenário em constante negociação.

A ambientação transforma a geografia em argumento dramático. Canais, manguezais e condomínios fechados desenham um território de fluxos discretos, onde encontros decisivos ocorrem longe do centro da cidade. Quartos de hotel, escritórios envidraçados e gabinetes refrigerados compartilham o mesmo ar, como se a circulação de poder fosse sempre condicionada pela temperatura do conforto. O design de produção cuida para que nada pareça improvisado, sinalizando a disciplina de quem quer controlar a imagem em cada detalhe.

O filme deixa entrever uma sátira mordaz das elites costeiras. Brindes, regatas e eventos beneficentes funcionam como palcos de credencial social, e a cobertura midiática favorece quem oferece melhor espetáculo. Nesse ambiente, versões se consolidam porque prestam serviço a espectadores que querem confirmar crenças, não testá-las. Quando a investigação esbarra em interesses maiores, a lei se torna cálculo de risco. A partir daí, a disputa se desloca do campo jurídico para o de relações públicas, com comunicados que soam preparados para evitar erosão de marca.

As reviravoltas, abundantes, exigem atenção. McNaughton prefere revelar peças do quebra-cabeça em etapas, de modo que o quadro nunca pareça completo. Quando a trama apresenta resposta, outra pergunta já está posta. Não há preocupação em buscar plausibilidade estrita de cada evento, e sim em mostrar como a verdade pode ser empacotada, vendida e trocada. A torrente de surpresas não funciona apenas como recurso lúdico; serve para demonstrar que, naquela comunidade, sinceridade vale pouco diante da utilidade política de cada versão.

Há elementos datados, sobretudo na forma como a cultura pop de então representava acusações e relações de poder. Ainda assim, o filme preserva interesse ao desnudar mecanismos que seguem ativos. A figura pública ainda calcula gestos conforme repercussão, empresas continuam a tratar disputas legais como linha de orçamento, e a imprensa busca narrativas com apelo imediato. O público reconhece, com desconforto, a repetição desses padrões na vida contemporânea, o que mantém o filme em circulação simbólica.

O trabalho de montagem reforça a sensação de tabuleiro móvel, alternando exposições, acenos de cumplicidade e pequenas confissões que deslocam a leitura dos fatos. Não há longas explicações didáticas. A progressão se apoia em sinais, olhares e detalhes materiais, como contratos, cheques, fitas e telefonemas. Cada objeto aponta para uma história paralela, e a soma dessas pistas cria a percepção de um mundo em que relações são registradas menos no papel e mais na memória de quem tem algo a negociar.

Ao concluir o percurso, “Garotas Selvagens” permanece como peça de humor ácido e suspense calculado sobre uma sociedade que transforma reputação em ativo financeiro. O filme não oferece lição moral definitiva. Prefere deixar o público com a sensação de que certas estruturas de privilégio resistem porque aprendem rápido a recontar os próprios fatos. Em contextos onde a velocidade da informação dita a sobrevivência pública, essa habilidade vale mais do que princípios declarados, o que ajuda a explicar por que alguns vencem mesmo quando parecem cercados.

Filme: Garotas Selvagens
Diretor: John McNaughton
Ano: 1998
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★