Existe um filme que todo mundo deveria assistir. Ele entrou na Netflix sem alarde — muita gente nem percebeu Divulgação / Paramount Vantage

Existe um filme que todo mundo deveria assistir. Ele entrou na Netflix sem alarde — muita gente nem percebeu

A jornada acompanha um jovem recém-formado que decide cortar laços, doar suas economias e partir rumo ao norte, convencido de que a sobrevivência longe das regras comuns trará coerência aos seus princípios. O longa “Na Natureza Selvagem”, dirigido por Sean Penn e estrelado por Emile Hirsch, com participações de Catherine Keener, Hal Holbrook, Kristen Stewart e Vince Vaughn, adapta o livro “Na Natureza Selvagem”, de Jon Krakauer, e acompanha a tentativa de transformar convicções em prática cotidiana em estradas, rios e paisagens de clima severo.

Hirsch constrói um protagonista intenso sem ares de santidade. Ao adotar o nome Alex, o personagem impõe a si próprio um código rígido: generoso com desconhecidos, duro com a família, avesso a qualquer proposta que sugira permanência. O interesse nasce do contraste entre a gentileza com quem encontra pelo caminho e a recusa de compromissos que poderiam suavizar a travessia. A cada parada, uma vida possível se insinua: trabalho estável, troca afetiva, uma comunidade temporária. Em vez de aceitar, o viajante avança, como se cada acolhida ameaçasse a coerência do projeto.

O elenco de apoio ilumina o que poderia ter acontecido se o protagonista cedesse meio passo. Catherine Keener e Brian Dierker oferecem um abrigo nômade que combina afeto e liberdade; a proposta não exige renúncia de convicções, apenas convivência. Vince Vaughn representa o trabalho direto, a regra simples, a conversa que resolve problemas com praticidade. Kristen Stewart sugere a possibilidade de rotina, música e vizinhança, um convívio sem grandes promessas, porém real. Hal Holbrook dá corpo à sabedoria de quem viveu perdas e oferece cuidado tardio, com uma generosidade que pede resposta. Em todos os casos, a estrada fala mais alto e as alternativas se desfazem, deixando no ar a sensação de escolhas custosas.

A direção de Sean Penn mantém a câmera próxima do corpo e do desgaste. Não há filtro que esconda a pele queimada, a fome que altera humor, o frio que prende movimentos. Ao lado disso, o filme visita o passado do protagonista. William Hurt e Marcia Gay Harden, como os pais, compõem um lar em que cobrança e aparência pesam. Esse ambiente ajuda a entender a rejeição a símbolos de status e proteção, sem transformar mágoas familiares em passe livre para imprudências. A causalidade se constrói pelo acúmulo de episódios, não por discursos explicativos, o que reforça a ideia de que a decisão de partir nasce de um somatório de pressões e desejos.

A fotografia de Eric Gautier prefere a luz disponível e a amplitude do quadro. Planícies, florestas, rios e o gelo do Alasca aparecem como caminhos que acolhem até certo ponto e depois exigem técnica e paciência. O horizonte, tantas vezes aberto, funciona como promessa e também como engano, pois a distância linda pode esconder obstáculos que não se vencem apenas com vontade. A câmera encontra detalhes de pedra, água e vegetação que lembram o espectador de que a natureza tem ritmo próprio. Quando o protagonista avança rumo ao norte, a imagem registra a troca de euforia por resistência, sem perder a atenção às pequenas vitórias diárias.

A montagem combina deslocamentos, cartas e a narração da irmã, interpretada por Jena Malone. Essa voz não dita conclusões; oferece informação, memória e preocupação, lembrando que a rota solitária deixou ausências. O alternar de tempos permite observar como o passado continua presente e como decisões tomadas em silêncio cobram resposta na estrada. A costura entre família, leitura e aventura molda um painel em que cada encontro adiciona uma hipótese de futuro, sempre posta em avaliação pelo próprio viajante.

A música de Eddie Vedder funciona como caderno de bordo. Canções de melodia direta e timbre áspero acompanham estados de espírito: avanço, hesitação, alegria breve. Michael Brook assina passagens instrumentais que conectam paisagens distantes e sugerem mudança de fôlego. A trilha não impõe emoção; acompanha a experiência com discrição, deixando que cansaço e clima conduzam a percepção do público. Em vez de emoção fabricada, o que se escuta é a vibração de quem enfrenta terreno desconhecido com repertório limitado e muita teimosia.

O filme discute a ideia de pureza como objetivo possível. Ao renunciar a dinheiro, sobrenome e planejamento de longo prazo, o protagonista acredita aproximar-se de uma vida verdadeira. A prática demonstra outro cenário: fora do ambiente urbano, improviso tem limite e conhecimento específico salva vidas. Não há condenação automática nem absolvição fácil. A proposta de independência cobra preparo, e o romance com a autossuficiência, sem estudo e sem rede, tende a virar risco constante. O interesse dramático nasce dessa colisão entre sonho e manutenção diária da própria segurança.

O ônibus abandonado no interior do Alasca, ponto conhecido do relato real, concentra sentidos opostos. Serve de abrigo e, ao mesmo tempo, reduz a margem de manobra, porque fixa o viajante em um lugar que oferece pouco. A ideia de território próprio convive com a lembrança de que o entorno impõe regras. A partir dali, escolhas pequenas ganham peso desproporcional: um alimento mal escolhido, uma travessia adiada, um cálculo otimista diante de um rio. A narrativa acompanha essas decisões com sobriedade e deixa que o ambiente imponha a conta.

A direção preserva a dimensão humana do percurso. Interessa observar gestos simples: dividir um objeto, cozinhar algo básico, aceitar um conselho, negar outro. Esses gestos, repetidos ao longo da jornada, revelam as oportunidades de aprendizado descartadas por quem pretende se bastar. Há calor nas paradas, generosidade nos encontros e sabedoria em alertas que poderiam ter mudado rotas. Ao insistir em seguir adiante, o protagonista confirma que o projeto não é apenas uma viagem, mas uma recusa contínua. Essa recusa tem custo mensurável na saúde, no humor e na capacidade de julgar o perigo.

O retrato social que aparece nas paradas acrescenta contexto. A América vista do acostamento reúne trabalhadores temporários, pequenos produtores, voluntários e jovens em trânsito. Há ali uma economia de favores, diárias, caronas e conversas que sustentam deslocamentos. O protagonista usufrui dessa rede e, ao mesmo tempo, rejeita seus convites de permanência. O filme observa esse paradoxo com clareza: a independência sonhada se alimenta de colaborações que ele aceita de maneira pragmática, mas abandona assim que reaparece a estrada.

“Na Natureza Selvagem” permanece relevante porque a promessa de autenticidade continua a magnetizar quem sonha com um começo radical. A produção reconhece a atração por esse caminho e lembra que liberdade e responsabilidade podem caminhar juntas. A natureza oferece beleza e recursos a quem aprende seus ritmos; a convivência, mesmo exigente, dá sentido a dias difíceis. Entre asfalto e gelo, trabalho e silêncio, o protagonista descobre que coragem precisa de preparo e que autonomia sem escuta diminui margens de acerto. O cinema registra essa lição sem alarde e deixa no ar perguntas que continuam atuais para qualquer geração.

Filme: Na Natureza Selvagem
Diretor: Sean Penn
Ano: 2007
Gênero: Aventura/Biografia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★