Filme de Wim Wenders chega à Netflix e é o melhor lançamento de outubro Divulgação / Wenders Images

Filme de Wim Wenders chega à Netflix e é o melhor lançamento de outubro

Um homem de meia-idade acorda antes do sol, cumpre um ritual simples e segue para a cidade. O conflito central de “Dias Perfeitos” se define quando a rotina desse trabalhador, limpa e cronometrada, começa a ser atravessada por demandas de outras pessoas, o que o obriga a escolher entre proteger o ciclo que dá sentido aos seus dias e atender pressões externas com custo emocional. No filme de Wim Wenders, com Koji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano e Aoi Yamada, a história avança sempre que alguém pede algo a esse protagonista, e a resposta dele altera prazos, riscos e o espaço que resta para si.

Hirayama trabalha como zelador de banheiros públicos em Tóquio. Ele sai de casa, escolhe uma fita cassete, registra árvores em fotografia, abastece a van com ferramentas e inicia uma sequência de tarefas que revela uma ética de cuidado. Esse início apresenta o objetivo: manter os banheiros impecáveis e, com isso, preservar o bem-estar de desconhecidos e a própria estabilidade. Cada torneira conferida, cada piso escovado e cada olho no detalhe cumpre função dramática, pois mostra como ele administra tempo e energia para chegar, intacto, ao retorno para casa. A música das fitas delimita o dia: ao apertar o play, ele encerra o passado recente e inaugura um turno, decisão que informa humor e foco a cada jornada.

O primeiro obstáculo vem de dentro do trabalho. Takashi, colega interpretado por Tokio Emoto, quebra a cadência com atrasos, pedidos de empréstimo e atestados de irresponsabilidade. Quando Takashi negligencia parte do serviço, Hirayamaprecisa refazer tarefas, o que desloca o cronograma, comprime o almoço e encadeia efeitos até a noite. Em diálogos curtos, o colega tenta justificar decisões com promessas e romances mal explicados. A cada desculpa, o protagonista toma uma decisão que o caracteriza: não discute, refaz e anota mentalmente o prejuízo. A consequência é imediata no tempo dramático, pois as margens do dia diminuem, e o espaço para fotografar árvores ou ler antes de dormir sofre cortes.

O segundo obstáculo vem de fora: a família. A chegada inesperada de Niko, personagem de Arisa Nakano, altera a dinâmica doméstica e muda o ponto de vista sobre Hirayama. Ao acolher a adolescente, ele precisa reorganizar horários, dinheiro e silêncio. A presença dela informa o espectador sobre um passado que o filme não expõe em frases, mas em escolhas: há conforto na rotina e prudência diante de vínculos antigos. Quando Niko faz pedidos simples, como estender a estada ou participar de um passeio, o protagonista aceita, mas paga esse sim com horas tiradas do descanso e com riscos de atraso no dia seguinte. Cada concessão desloca o objetivo original, que era manter a estabilidade, e abre caminho para uma virada.

Essa virada ocorre quando a vida privada invade o trabalho e exige posicionamento. A irmã, figura ligada a um mundo mais abastado e construída por lembranças e ligações, cobra definições que reabrem feridas. O encontro que se segue — Niko devolvida à família e um pedido de “não repita isso” — produz um efeito direto no protagonista: ele entende que sua rotina não é apenas hábito; é defesa e escolha. Ao atender a exigência familiar, ele protege a sobrinha do conflito imediato, mas aceita um custo íntimo que aparece no turno seguinte, quando o silêncio da manhã pesa de outro jeito. O clímax começa a ser preparado nesse momento, porque o filme coloca Hirayama diante de uma decisão que não cabe mais na margem do cronograma.

A encenação de Wenders altera informação quando decide fixar a câmera em planos que acompanham o trabalho manual. O foco permanece no gesto, não no comentário; assim, cada corte de montagem tem função de elipse que marca a passagem dos dias e dá ao espectador instrumentos para medir atrasos e acertos. Quando o filme interrompe o padrão — por exemplo, ao inserir uma canção inteira sem cortes sobre um deslocamento — ele muda a percepção do tempo e desloca o ponto de vista para dentro do personagem. A música não ilustra: ela delimita um estado e nos diz quanto de energia restou para encarar o próximo pedido dos outros. No bar de uma noctívaga interpretada por Aoi Yamada, a canção que ecoa não é enfeite; é um dado novo sobre o passado do protagonista, pois atrai figuras que reconhecem nele alguém de outro círculo social, pressionando-o a admitir ou negar uma antiga identidade.

As atuações têm impacto direto no sentido das cenas. Koji Yakusho constrói Hirayamacom microdecisões que alteram a leitura do conflito. Quando ele evita confrontos, não se trata de passividade; é cálculo de risco para preservar o objetivo de completar o dia com dignidade. O olhar ligeiramente abaixado ao ouvir um pedido de Takashi indica que ele já contabilizou o prejuízo e decidiu agir de maneira a minimizar danos. Tokio Emoto faz do colega um vetor de caos que, em momentos pontuais, tenta se responsabilizar, o que cria pequenas tréguas e devolve minutos ao protagonista. ArisaNakano, como Niko, enuncia curiosidade e admiração que movem a trama, pois cada pergunta dela revela informação que a família prefere ocultar e empurra Hirayamaa se expor. Aoi Yamada, associada a um ambiente noturno, funciona como lembrança viva de uma rede social que o protagonista deixou para trás; sua presença muda o foco para o passado e encurta o presente.

A estrutura segue apresentação, desenvolvimento e escalada com clareza. Nos primeiros dias, vemos o objetivo e o modo de trabalho. Em seguida, os imprevistos comprimem o tempo disponível e forçam mudanças de rota. A escalada se dá quando solicitações externas coincidem no mesmo período, acumulando exigências de família e serviço, até o ponto em que uma escolha precisa ser feita sob pressão. O clímax concentra risco, escolha e consequência imediata: Hirayama precisa decidir entre priorizar um laço que pede retorno e manter o ciclo que o sustenta. O resultado da decisão fica preservado, mas seu custo aparece no corpo dele, na respiração prolongada e no modo como ele lida com a fita da vez.

Os diálogos servem à função informativa. O pedido de dinheiro de Takashi explica por que certas áreas ficam para depois e abre flanco para reclamações de usuários, o que ameaça a reputação de Hirayama. A conversa breve com a sobrinha, quando ela pergunta sobre as árvores e as fotos, desloca o foco para o motivo íntimo do protagonista e prepara a leitura de que aquilo não é hobby aleatório, mas âncora emocional. Quando a irmã aparece para reivindicar a volta da filha, as frases são cortantes, e cada pausa informa hierarquias familiares que explicam por que Hirayama evita cruzar certas pontes.

Som e música interferem no tempo. O barulho da escova, da água e do metal cria uma cadência que dá o compasso da progressão do dia. Quando a trilha diegética toma a frente, ela reprograma o relógio interno do personagem e do público. Uma canção específica, repetida em momento chave, reencena lembranças e impõe um compasso diferente ao retorno para casa, o que prepara o clímax sem exposição verbal. A montagem respeita esse desenho, alternando rotinas inteiras com cortes secos que saltam para o próximo amanhecer, até o instante em que, pela primeira vez, a sequência é quebrada, sinalizando que a decisão tomada terá efeitos que não cabem mais no velho ritmo.

Comparações ajudam a ler a estratégia narrativa. Ao privilegiar repetição, silêncio e elipse, o filme dialoga com escolhas vistas em “Era Uma Vez em Tóquio” e “Depois da Vida”, quando a rotina revela caráter e o tempo serve para medir perdas. Aqui, a opção pelo gesto concreto e pelo plano paciente evita slogans e produz jornalismo dramático: vê-se um trabalhador gerindo recursos escassos, negociando com demandas e respondendo pelas consequências de cada sim e de cada não.

“Dias Perfeitos” demonstra, com ações encadeadas, como um homem aparentemente invisível precisa pensar o dia como uma equação de riscos, afetos e prazos. Quando o imprevisto força sua mão, ele decide, paga o preço e segue, até que a soma dos custos empurra a história para o limite. No clímax, a pergunta está desenhada com precisão: o que ele mantém, o que ele devolve e quanto isso altera o próximo amanhecer. O desfecho fica guardado; o que se sabe é que cada escolha deixou marcas visíveis no relógio, no corpo e no som que o acompanha.

Filme: Dias Perfeitos
Diretor: Wim Wenders
Ano: 2023
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★