45 prêmios, Oscar na conta e Brad Pitt no elenco: disponível na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

45 prêmios, Oscar na conta e Brad Pitt no elenco: disponível na Netflix

Alejandro G. Iñárritu constrói uma tragédia de escala íntima, embora o mapa abra três continentes. Ao lado de Guillermo Arriaga, ele retoma a pesquisa sobre conexões imprevisíveis que começou em “Amores Brutos” e seguiu em “21 Gramas”; aqui, o desenho ganha uma serenidade cruel. A narrativa não se apressa; a montagem aproxima pessoas que nunca se conhecerão; cada gesto tem peso de semente que o vento levou para terrenos alheios. A coincidência deixa de ser truque e passa a funcionar como lei doméstica do acaso.

O rifle presenteado por um empresário japonês ao guia marroquino começa como lembrança de uma caçada e termina como ferida que atravessa um ônibus turístico. Entre um ponto e outro, há venda, há necessidade, há a rotina de um rebanho que precisa de proteção. Os meninos marroquinos que disputam pontaria, Yussef e o irmão, não antecipam a espessura da consequência; a infância mede distância em palmos e anota vitórias numa pedra. O projétil encontra o ombro de Susan, Cate Blanchett atravessada por uma dor que apaga o sol; Brad Pitt, no papel de Richard, aprende a negociar com um mundo que não responde aos códigos do seu cotidiano.

A pequena comunidade que acolhe o casal não é cenário de exotismo e tampouco catálogo de provações; é espaço de trabalho e de cuidado. Há uma sala improvisada, há panos fervidos, há vozes que decidem em conjunto, há a presença discreta de uma curandeira idosa que traz outro modo de tratar a fragilidade. Iñárritu filma o deserto com uma gravidade que recusa efeito turístico; Rodrigo Prieto imprime texturas que aderem à pele e à lente. O helicóptero que demora não é símbolo de crítica fácil; é apenas a imagem do tempo e de suas falhas.

Enquanto isso, em San Diego, a casa onde vivem Susan e Richard respira graças a Amélia, a babá que sustenta a rotina dos filhos do casal. Adriana Barraza faz desse papel uma prova de humanidade disponível; quando o casamento do filho a chama no México, a falta de alternativa empurra uma decisão que traz as crianças para a fronteira. A travessia noturna tem o brilho enganoso das festas e a dureza das guaritas; Gael García Bernal, como o sobrinho que dirige, imprime aceleração onde caberia prudência; a estrada troca a familiaridade do afeto pela aridez de procedimentos. Bárbaro é o momento em que uma lágrima silenciosa cai no retrovisor e não encontra acolhimento; ali está a medida da burocracia que absolve a si própria enquanto pune quem tem menos margem de erro.

A sequência no posto de imigração não editorializa e não posa de tese; deixa que a geometria da cena fale. Vozes elevadas, luz branca, olhos infantis que perdem a coragem e procuram uma mão. Amélia tenta dizer que cuidou, que protegeu, que alimentou; a palavra não vence as barreiras de um protocolo que só reconhece papéis. A partir daí, cada detalhe vira memória difícil: poeira que entra por baixo da porta do carro, o calor que não alivia, uma festa de casamento que se transforma em lembrança fendida.

Em Tóquio, a história se concentra na filha do empresário que deu o rifle. Chieko, interpretada por Rinko Kikuchi, atravessa discotecas, consultórios e apartamentos com um corpo que implode a cada tentativa de ser percebida. A surdez não define, mas estrutura a relação com o mundo; o som do filme, em vários momentos, convida o espectador a partilhar a distância que separa um gesto de outro gesto. Chieko procura um olhar que a reconheça; oferece o próprio corpo como senha para uma entrada que não encontra; a investigação policial em torno do pai, vivido por Koji Yakusho, amplia um desconcerto que já existia antes do inquérito. Ela escreve bilhetes, abre portas, convoca o desejo e a piedade; no fim, o que se instala é uma solidão de alto ruído.

A montagem alterna os espaços com um pulso que recusa espetáculo. Rodrigo Prieto cria um vocabulário visual para cada território; o deserto tem temperaturas que raspam, San Diego exibe uma luz domesticada que cobra funcionalidade, Tóquio pisca em azuis e brancos que lembram lâminas. Essa heterogeneidade não divide o filme; produz um relógio interno que move todas as linhas na mesma hora. Quando uma cena de dança se interrompe sem aviso, a interrupção ecoa na sala improvisada do vilarejo marroquino; quando o vidro de um carro captura a respiração de uma criança, essa respiração continua no corredor estreito de um apartamento japonês. A sensação de unidade, aqui, nasce de ritmos e não de explicações.

O roteiro de Arriaga aposta na delicadeza das conexões. A bala que atravessa um ônibus não desenha um diagrama elegante; abre uma série de rachaduras que expõem as camadas menos visíveis da vida cotidiana. O que se revela é um catálogo de vulnerabilidades: o turista que imagina controle sobre o imponderável; a trabalhadora imigrante que resolve o que precisa ser resolvido e paga um preço desproporcional; a adolescente que mede seu próprio valor com régua alheia porque o mundo à volta não oferece outra régua. As casualidades não aparecem como fábulas sobre destino; funcionam como lembretes de que a existência insiste em acontecer fora da nossa agenda.

Os atores respondem a esse desenho com contenção e precisão. Brad Pitt trabalha o desespero sem quebrar a escala do plano; cada pedido de ajuda contém indignação e vergonha. Cate Blanchett entrega corpo e tempo a uma personagem reduzida à espera e à dor; o rosto dela se torna topografia. Adriana Barraza coloca na voz uma ternura que sustenta a autoridade moral de Amélia; há dias inteiros dentro de um único olhar. Rinko Kikuchi constrói uma presença que fere e protege ao mesmo tempo; a nudez deixa de ser gesto de exposição para virar tentativa de linguagem. Koji Yakushoguarda uma devastação que só admite meia frase; a gravidade dele desloca o ar na sala.

A trilha de Gustavo Santaolalla risca a superfície das cenas com motivos que se repetem com variações mínimas; o som do vento e dos motores, o rumor dos passos, o silêncio que abre espaços, tudo serve como matéria de atenção. A decisão de não traduzir algumas falas coloca o espectador na mesma precariedade dos personagens; entender exige paciência, envolve abdicar de certezas. A câmera insiste no rosto e nas mãos, nos objetos de trabalho, nas águas fervendo, nos panos, nas fechaduras, nas garrafas, nas janelas da madrugada. Não há coleta de postais; há insistência no que sustenta a vida quando o discurso falha.

“Babel” pertence à linhagem de filmes que acreditam na ética do detalhe. A grandiosidade não vem do volume de países, mas do cuidado em registrar uma dor que não fecha em conclusão triunfal. Quando, perto do fim, as linhas se aproximam e deixam claras algumas pontes, a emoção cresce; não há catarse que apague o desgaste, porém há uma chance de escuta renovada. O que permanece, depois da última imagem, é a impressão de que a comunicação não resolve a tragédia da existência, embora abra uma passagem pela qual é possível atravessar com menos perdas.

Ao cabo de 143 minutos, o filme deixa um rastro que não se confunde com lição. Há severidade e há ternura; há violência e há esforço de cuidado; há escolhas ruins e há consequências que ultrapassam quem escolheu. Iñárritu e Arriaga não absolvem e não condenam; oferecem o retrato de uma máquina humana que falha com frequência e, mesmo assim, tenta manter pessoas de pé. Entre a poeira do deserto e o neon japonês, entre a guarita da fronteira e a sala do vilarejo, entre a cama de hotel e a pista de dança, resta a lembrança de um som que diminui o ruído do mundo por um instante. Esse instante vale o filme inteiro.

Filme: Babel
Diretor: Alejandro G. Iñárritu
Ano: 2006
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★