O poder sempre esteve no centro das relações humanas. Os contratos de mando e obediência permeiam as instituições de Estado e seus mecanismos de controle, mas também aparecem em âmbito privado, nos vínculos conjugais, nos acordos tácitos que estruturam as famílias e a sociedade. A silenciosa intervenção das autoridades em temas de foro íntimo, como o casamento, a sexualidade e a maneira de educar os filhos, por exemplo, ilustra em que medida o poder avança fronteiras que, teoricamente, deveriam ser preservadas pelas escolha individuais. O que está em jogo não é apenas a ordem social, mas a tentativa de regular comportamentos ligados à subjetividade humana. O matrimônio não é mais apenas um pacto entre um casal, a Igreja e a comunidade, nessa ordem, mas uma carta de direitos, deveres e punições regulada por lei. Dessa forma, a intimidade entre duas pessoas passa a ser também uma questão de interesse público, já que envolve os bens de cada um e aqueles que amealham juntos, descendência, moralidade. Ao legitimar uniões e desfazê-las, com o divórcio, o Estado age como mediador, mas também como juiz do que deveria ficar restrito a quatro paredes.
Nesse terreno pantanoso, a violência aparece como uma face brutal do poder. A violência doméstica, muitas vezes oculta sob o manto da intimidade, revela quão distorcido pode ser o papel de gerir discordâncias no lar. Afetos tornam-se instrumento de dominação e o silêncio das vítimas, quase sempre, é reforçado pela negligência ou demora da justiça. Quando o Estado não intervém, os ciclos de opressão tendem a se perpetuar, mas nas circunstâncias em que exorbita, ameaça-se a liberdade dos cidadãos. O que se conclui é que poder e violência estão entrelaçados, a ponto de desafiar o limite entre indivíduo e Estado. Levanta-se, então, a pergunta de um milhão de dólares: até onde vai o direito do Estado de meter-se no que concerne à ordem privada? Em que casos sua ausência redunda em omissão diante de abusos e quando sua presença torna-se arbitrária e invasiva?
Teoricamente, o Estado atua para dirimir tensões sociais e atenuar os conflitos tão próprios dos relacionamentos entre as pessoas. O equilíbrio entre poder e liberdade soa como um paradoxo que revela a força do Estado e a débil condição humana frente a tiranias inomináveis, públicas e secretas. Nesta seleção, com os sete melhores filmes do catálogo do Prime Video, as complexas relações entre os homens navegam num oceano de questões, das preferências ideológicas aos crescentes abusos da inteligência artificial, reservando lugar para o debate do racismo e das iniquidades do mundo do trabalho e do dinheiro — e, o principal, da falta dele. Sete produções que testificam sua atemporalidade e merecem ser conhecidas e revisitadas.

A verdadeira ideologia dos políticos é o talento para obter vantagens pessoais, e nisso Donald John Trump, o inquilino de turno da Casa Branca, põe seus homólogos no chinelo, uma vez que têm no bolso boa parte dos bilionários do globo terrestre. A ojeriza pelo 45º e 47º presidente dos Estados Unidos ganhou novo fôlego diante de “O Aprendiz”, a biografia desautorizada do magnata do mercado imobiliário americano que o roteiro de Gabriel Sherman compõe em quase todas as suas filigranas mais sórdidas. Há pouco no filme de Ali Abbasi que já não se soubesse, mas sempre resta um esboço de surpresa com a arrogância criminosa de Trump e seus seguidores, uma ameaça real à civilização. Abbasi e Sherman voltam aos anos 1970, momento em que Trump aproxima-se de Roy Cohn (1927-1986), um advogado nova-iorquino famoso por ter sido assessor de Joseph McCarthy (1908-1957), que devotou a carreira no Senado a perseguir comunistas, declarados e supostos. Enquanto precisou de Cohn deu para participar de festinhas regadas a burbom, cocaína e orgias homossexuais na casa do novo amigo, lances que “O Aprendiz” apresenta sem nenhuma censura. Em comentários sobre o filme, título que alude ao programa da NBC que cristalizou Trump como um fenômeno da comunicação de massa, O Aprendiz, bem ao seu estilo, bateu abaixo da linha da cintura e disse que o longa de Abbasi é “sem classe e fajuto”, ou seja, uma reprodução perfeita do que é o homem mais poderoso do mundo. Trump, o porco, quer fazer do planeta seu chiqueiro particular, e talvez nem leve tanto tempo assim para que chafurdemos com ele. Portanto, é dever de todo cidadão decente deste planeta repudiá-lo com toda a veemência.

No mundo ideal, famílias só começariam depois de observados alguns passos elementares. Duas pessoas solteiras, adultas, independentes e desarmadas se conheceriam, passariam dias em conversas tão ridículas quanto imprescindíveis, trocariam beijos, carícias, firmariam compromisso e, só então, pensariam em filhos — que talvez não viessem. Na vida como ela é, entretanto, o estado intermedeia o encontro daqueles que, por uma ou outra razão, cumpridas ou não essas etapas, não alcançam o sonho da maternidade e da paternidade, e, finalmente, um núcleo familiar nutrido por correntes de genuíno afeto, acima até mesmo do onipresente sangue, estaria pronto. A estranheza de “A Avaliação” não é tão diferente de muitos filmes sobre o futuro de nossa espécie, salvo por incluir na equação a inexorabilidade dos avanços da ciência, uma bênção e um flagelo a depender de quem os conduza. Fleur Fortuné acerta em cheio ao mirar os eternos desejos e insatisfações humanos, busca que nem sempre termina bem. O ótimo texto dos roteiristas John Donnelly, Nell Garfath Cox e Dave Thomas acha eco numa das grandes agonias da contemporaneidade, majorada por nosso ímpeto profano de emular a onipotência divina. Mais uma vez, Alicia Vikander apresenta um irretocável de composição de uma vilã dissimulada parida pelo falso progresso tecnológico, muito semelhante ao que se constata na Ava de “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, e ainda assim bastante original.

Jimmy Erskine, o protagonista de “O Crítico”, sabe que despendemos muito tempo esmerando-nos por escapar à banalidade, uma batalha perdida que insistimos em travar com os fantasmas menos óbvios que habitam nossas profundezas mais inacessíveis. Anand Tucker ilumina a personalidade lúgubre de um homem sofisticado e poderoso, prestes a experimentar a grande debacle de sua vida, e o roteiro de Patrick Marber, baseado em “Curtain Call” (“chamada ao palco”, e tradução livre; 2015), o romance de Anthony Quinn, um homônimo do ator, desdobra-se em nuanças múltiplas de vício de uma figura tão sorrateira quanto ardilosa. De quando em quando, Tucker dosa a essência tenebrosa de seu filme, reforçada pela fotografia impecável de David Higgs, com soluções tão singelas quanto geniais, como nas vezes em que contrapõe a majestade de Erskine ao desprendimento de Annabel, a mãe de Nina, que atreve-se a pontuar com ele a respeito das diferenças entre o teatro elisabetano, feito basicamente de comédias, dramas históricos e peças com elementos de romance e aventura, e o jacobino, que o sucedeu, de textos mais violentos e cínicos, ou em que medida Christopher Marlowe (1564-1593) foi uma inspiração para Shakespeare. Quiçá a atriz mais versátil das artes dramáticas no país do Bardo, Lesley Manville garante umas risadas, mas também comove na iminência do desfecho, ao contar a Stephen Wyley, o verdadeiro amor de Nina vivido por Ben Barnes, sobre a morte dela. “O Crítico” é um filme cheio de maravilhosos excessos, que não tem a menor vontade de agradar a todo mundo — e por isso é tão bom.

Em “Apresentando os Ricardos”, Nicole Kidman interpreta uma Lucille Ball que atravessa a semana mais difícil de sua carreira. Acusada de ser simpatizante do Partido Comunista, perdendo papéis importantes no cinema, sendo pressionada pela audiência, precisando concluir uma parte do roteiro de “I Love Lucy” com o risco de ser detonada pelos maiores jornais que a cobrem e de ter baixa receptividade do público, Lucille, a atriz mais celebrada da comedia de situação americana, tenta transformar água em vinho numa semana complicada, até desconfiar que, para a cereja do seu bolo, seu marido, o Desi Arnaz de Javier Bardem, a está traindo. Com sua carreira ameaçada e seu casamento em ruínas, Lucy precisa enfim utilizar de sua máscara como comediante e driblar os problemas, pelo menos, até o fim das gravações.

Poucas vezes na história do cinema a pobreza, a desigualdade social, os horrores que o dinheiro — ou, principalmente, a falta dele — acarreta na vida de indivíduos e de uma nação, nessa ordem, foram mostrados com tamanhas perspicácia e virulência como em “Parasita”, um filme dificílimo de ser rotulado. A uma apreensão ligeira, pode-se pensar numa comédia de costumes temperada com um quê de suspense; todavia, não são necessários mais que quinze minutos para que se alcance a conclusão de que, feito na vida como ela é, aqui também tudo reveste-se de camadas mais e mais densas de reflexão prática, com uma grande história, de apurada linguagem visual, na superfície. Poucos diretores sabem como dizer essas verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano Bong Joon-ho, que, merecidamente, botou no currículo láureas a exemplo do Oscar de Melhor Filme por este trabalho, o primeiro longa em idioma estrangeiro a vencer na categoria, e também o primeiro a ganhar a estatueta da Academia e a Palma de Ouro de Cannes — façanha que voltou a acontecer 65 anos depois de “Marty” (1955), de Delbert Mann (1920-2007) —, sem deixar de fora também a premiação como Melhor Filme Internacional, mais óbvia.

O choque entre dois mundos, gerando um universo novo. Esse poderia ser o resumo de “Green Book: O Guia”, do diretor Peter Farrelly. Na Nova York dos anos 1960, Tony Vallelonga é segurança do célebre dancing Copacabana, conhecido de “Os Bons Companheiros” (1990). Tony Lip, o bom de lábia, como o chamam os muitos amigos, consegue tudo o que quer com uma conversa, mas sabe usar a força bruta direitinho se necessário. Como o Copacabana vai ficar um tempo fechado e Tony, chefe de uma família numerosa, não pode se dar ao luxo de ficar sem trabalho, aceita servir de chofer e guarda-costas para o refinado Don Shirley, talentoso pianista negro que se prepara para uma turnê no sul dos Estados Unidos. As “habilidades” de Tony serão de grande valia para Shirley, já que ainda vige a política de segregação racial que determina o que cidadãos negros podem ou não fazer e onde devem se hospedar em viagem ao sul, tudo publicado num guia de capa verde. Conforme se conhecem um ao outro, vão se estranhando, mas vão também reconhecendo afinidades. A exemplo de Shirley, Tony não pode se definir como um americano típico, já que é ítalo-descendente e católico; o músico, por sua vez, enxerga no empregado um homem digno, que como ele não tem medo de trabalho e que constituiu uma família unida, feito cujo valor o solitário pianista reconhece. Todo o enredo é costurado por essas passagens, ora sob o ponto de vista do segurança, ora priorizando as opiniões — e preconceitos — de Shirley, que vai se tornando cada vez mais tolerante com Tony à medida que identifica suas próprias fraquezas.

Dirigido por Lynne Ramsay, ”Precisamos Falar Sobre o Kevin“ é um drama psicológico intenso que mergulha nas complexidades da maternidade, da culpa e do mal. Baseado no romance de Lionel Shriver, o filme acompanha Eva, uma mãe devastada pelas ações violentas de seu filho Kevin, responsável por um massacre em sua escola. A narrativa fragmentada alterna passado e presente, refletindo o estado emocional caótico da protagonista, vivida de forma magistral por Tilda Swinton. Ramsay constrói uma atmosfera opressiva com o uso simbólico da cor vermelha, do som e da montagem dissonante, criando uma sensação constante de desconforto. O filme não fornece respostas fáceis sobre a origem da maldade de Kevin, interpretado com inquietante frieza por Ezra Miller, mas levanta questões sobre a responsabilidade parental, a genética e o livre-arbítrio. Eva é retratada como uma mulher ambivalente, cujos sentimentos contraditórios em relação à maternidade geram empatia e julgamento. A obra desafia o espectador a confrontar tabus profundos, como a possibilidade de não amar um filho. Com uma abordagem estética e narrativa ousada, Precisamos Falar Sobre o Kevin é um estudo perturbador e inesquecível sobre a devastação íntima provocada por uma violência inexplicável.