A obsessão é uma força da natureza. Devastadora, ela nasce de desejos inofensivos à primeira vista, como a busca por amor, segurança ou até reconhecimento, mas transforma-se rápido em uma prisão que mata a liberdade e compromete o juízo. Uma mente obcecada nunca acha descanso, torturada pelo objeto de sua fixação, ocupando todos os espaços, minando o sono, interrompendo o raciocínio. Essa energia desperdiçada abre brechas para as tantas doenças do corpo e da mente, e a neurose converte-se num ciclo interminável de autodestruição. Ansiedade, depressão, transtornos compulsivos: essas são algumas das respostas aos excessos e ao desgaste metódico de uma alma que não consegue escapar aos abismos que cava para si mesma. E o corpo padece. Tudo aquilo que não encontra amparo na lógica traduz-se em dores, insônia, fadiga. O indivíduo deixa-se escravizar por seus fantasmas. O desejo insaciável de acumular riquezas, poder e prestígio transforma homens em máquinas que exploram, manipulam e corrompem sem atentar para as consequências. A ganância é, em muitos sentidos, uma das pragas mais avassaladoras. O vazio do âmago fica ainda mais gigantesco com a acumulação de bens, embora quem perca a vida paralisado nesse equívoco não se dê conta.
O ódio talvez seja a obsessão mais perigosa. Condutas odientas vêm da inaptidão patológica de se aceitar as diferenças, do rancor e da necessidade de encontrar no outro um inimigo a se exterminar. Ao repelir o diálogo, o ódio envenena as relações, e essa labareda que varre tudo só se satisfaz no momento em que não reste nada além de cinzas. Esses quatro cavaleiros do apocalipse nosso de cada dia — obsessão, doença, ganância e ódio — formam um círculo vicioso que se retroalimenta: a obsessão leva ao adoecimento; o adoecimento gera frustrações; a frustração desperta a ganância e o ódio bate o último prego no esquife. Aceitar que eles existem pode ser o primeiro passo para oferecer-lhes resistência. Consciência crítica, sensatez e o cultivo de valores como solidariedade, compaixão e autocontrole são caminhos possíveis para interromper o ciclo. Só assim troca-se o fogo infernal das ideias fixas pela clareza serena da razão, fazendo com que corpo e mente recobrem o equilíbrio.
Obsessões, doenças, ganância e ódio são, em maior ou menor grau, assuntos dos dez filmes desta lista, os dez melhores disponíveis na HBO Max. Levando o espectador a analisar e discutir problemas que cruzam as décadas, essas histórias permanecem incomodando, sem deixar de entreter. Isso é cinema.

Há quem fuja do amor, outros tentam dar as costas às próprias escolhas, enquanto a verdade, feito o sol, não só ilumina como queima. Essas evasivas só fazem prolongar os arcaicíssimos embates que alguém trava consigo mesmo, adiando a urgente libertação do espírito. Rona atravessa uma zona cinzenta entre o real e o ilusório, o verdadeiro e o enganoso, tudo em busca de recuperar-se e conhecer-se, como se assiste no ótimo “De Volta ao Mar”. Aqui, a alemã Nora Fingscheidt coloca em prática uma de suas especialidades e disseca a alma frágil de uma mulher doente. Com energia ainda maior do que despendera no agressivo “Imperdoável” (2021) ou no surpreendente “Transtorno Explosivo” (2019), Fingscheidt mira as cicatrizes de Rona, contando com uma ajuda fundamental. Junto com Fingscheidt, a jornalista e escritora escocesa Amy Liptrot adapta seu livro de memórias, de 2017, de modo a resgatar passagens trágicas de sua vida, especialmente depois de tomada pelo alcoolismo. Não por acaso, a protagonista empresta seu nome de uma das novecentas ilhas do litoral escocês, para onde regressa depois de uma temporada em Hackney, o bairro de agitada vida cultural ao leste de Londres. Desde o princípio, Saoirse Ronan, uma dos produtores, é habilidosa em dar vazão às diversas manifestações do temperamento de Rona, deixando no ar a possibilidade de uma mudança, sem contudo dar pistas concretas quanto ao destino de sua anti-heroína. O empenho por registrar o canto de um certo codornizão, uma ave migratória rara, baldada até o último minuto de filme, catalisa a ideia de ciclos, começos e recomeços, em que não cabem os subterfúgios que o título original insinua. Rona não precisa morrer afogada nem virar foca para reencarnar.

“2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968) continua a ser o filme definitivo sobre a incursão do homem noutras galáxias, embora se tente até hoje superar o gênio de um inspiradíssimo Stanley Kubrick (1928-1999), casos, entre muitos outros, do mexicano Alfonso Cuarón, com “Gravidade” (2013); do certeiro Ridley Scott em Perdido em Marte (2015); e do chileno-sueco Daniel Espinosa, diretor de “Life” (2017), realizadores talentosos e competentes em seu ofício, cujas produções esmeraram-se para merecer estar em algum ponto do universo desbravado por Kubrick. Christopher Nolan junta-se ao clube com “Interestelar”, um relato meio artificioso, mas ainda assim cheio de grandes momentos, sobre a eterna tendência do gênero humano para a destruição, inclusive do único planeta de que dispõe para viver. Nolan e o irmão, Jonathan, seu corroteirista, usam a iminência de um apocalipse para abordar rupturas familiares e a inescapável solidão nascida delas, como se num piscar de olhos aqueles que amamos se mudassem para uma galáxia distante, restando só uma terra morta. Cooper, o astronauta viúvo interpretado por Matthew McConaughey, parece o mais infeliz dos homens. Comandante da Endurance, a espaçonave que tenta chegar a um buraco negro nas imediações de Júpiter e daí a outros corpos celestes onde dar-se-á uma possível nova colonização, Cooper divide sua rotina com Amelia Brand, que por seu turno lamenta o fracasso da relação com o pai, astrofísico premiado, e os dois prestam-se a mestres de cerimônia de um enredo assombroso em sua melancolia, cheio das reviravoltas todas que garantem um percurso ora acidentado, ora menos turbulento, esvaziado das perturbações capazes de tirar do eixo navegantes zelosos. Anne Hathaway ancora boa parte das quase três horas, numa boa tabelinha com Jessica Chastain na pele de Murphy, a filha de Cooper num tempo futuro, porém indefinido, outro dos temas deslindados por Nolan entre uma e outra especulação acerca do como nos sairíamos obrigados a ganhar a vida numa dimensão paralela qualquer.

Paul Thomas Anderson parece ter um fascínio qualquer por histórias delirantes, inverossímeis, farsescas, não raro patéticas, que chegam aos olhos e ao coração de muita gente sob a forma de verdades imperscrutáveis até o momento em que tudo começa a desenhar-se de forma bem mais concreta do que se poderia supor. “Vício Inerente”, sua adaptação para o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, junta uma comédia sobre drogas a um labirinto de mistério, lembrando produções televisivas de meio século atrás. Anderson parece a todo custo querer distância do convencional, preferindo esmerilhar o noir em seus mais diferentes tons, chegando a uma narrativa fragmentada de propósito e cuja necessária extravagância desconcerta. A história se passa na Califórnia dos anos 1970, e Larry “Doc” Sportello, um detetive particular hippie, precisa descobrir o paradeiro de um famoso magnata do setor imobiliário. À medida que o filme ganha corpo, Doc se depara com policiais corruptos, empresários inescrupulosos, drogados, militantes políticos radicais e personagens outros que fazem o público imaginar-se no meio de um surto coletivo: Pynchon na veia. O andamento caótico da narrativa, intencional, pende ora para o humor nonsense, ora para o tragicômico, ainda sobrando margem para o suspense, e como um Coringa psicodélico Joaquin Phoenix coordena a ação como se também fôssemos velhos chapas de Doc. Num de seus melhores trabalhos, Josh Brolin rouba a cena como o anti-Doc, o exterminador de ideais, e “Vício Inerente” continua mais atual do que jamais fora. Para os que o entendem.

Em cada trabalho, Baz Luhrmann consegue achar um veio de glamour por onde desliza um rio de cor e brilho — a despeito da seriedade do assunto que esgrima. Ao falar de um garoto branco do Mississíppi que vira o rei do ritmo graças a um empresário de temperamento errático, fez de “Elvis” (2022) uma cinebiografia extravagante, plena das composições grandiloquentes que já se tornaram uma sua marca registrada. Retrocedendo-se duas décadas, “Moulin Rouge” (2001) foi uma declaração de amor ao submundo encantado da Paris do fim do século 19, e entre os dois “O Grande Gatsby” é como um retrato satírico da ascensão de certa elite americana, sete anos antes da quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 29 de outubro de 1929, crise que só foi acabar passados doze anos, em 1941. Malgrado o romance de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), publicado em 1925, já tivesse chegado à tela em outras duas circunstâncias, em 1949, pelas mãos de Elliott Nugent (1896-1980), e em 1974, sob o comando de Jack Clayton (1921-1995), Luhrmann vence a resistência ao tirar do roteiro, escrito com Craig Pearce, seu colaborador em “Elvis”, uma história tão delirante quanto as primeiras, porém, auxiliado pela tecnologia, ainda mais feérica. Em plena vigência da Lei Seca, os grã-finos continuam a dar intermináveis rega-bofes regadas a champanhe e uísque legítimos, muito mais baratos que antes da proibição. Essa é uma das memórias que sobem das profundezas do espírito de Nick Carraway, que registra suas vivências num diário como parte da terapia a que se submete num sanatório em Perkins, Oklahoma, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, e o espectador nunca sabe ao certo quanto pode haver de verdade em seu relato. Na pele de Carraway, Tobey Maguire domina o primeiro ato, quando seu personagem desce a lugares desconhecidos quiçá por ele mesmo para descrever em generosa medida o porquê de seu envolvimento com indivíduos de um estrato social tão distante de sua origem. Mas quando surge Jay Gatsby, o palco fica pequeno demais para os dois, e Leonardo DiCaprio passa a explicar sozinho os pesares por trás dos prazeres do grupo que representa como um embaixador, sem esquecer de galvanizar o ranço de preconceito e alienação, seus e de seus pares.

Cidade de Deus é um arrazoado de percepções de Paulo Lins sobre a favela homônima em que morou durante a infância pobre. O diretor Fernando Meirelles faz de Dadinho, autometamorfoseado em Zé Pequeno, um anti-herói que toma gosto pela vilania, e a partir dessa feitiçaria algo clariceana, o público depara-se com os segredos por ainda serem revelados do romance de Lins, do filme e do país que agrupa-nos todos, Clarices, Paulos, Fernandos, numa miséria para muito além do lado oeste da capital fluminense. O roteiro de Bráulio Mantovani contrapõe Dadinho a Zé Pequeno e os dois a Buscapé, no movimento perturbador e estimulante que denota um refinamento estético-narrativo cada vez mais bissexto em produções nacionais. Para traduzir isso em imagens, Meirelles socorre-se da tarimba dos muitos anos como criador de comerciais de televisão para inventar suas próprias técnicas — foi justamente por meio de uma delas que registrou o inusitado encontro entre Pequeno e Buscapé, com Leandro Firmino da Hora e Alexandre Rodrigues em performances memoráveis, que, por ser o Brasil o que é, nunca mais tiveram a oportunidade de replicar. A sequência da fuga da galinha, investida de um patético aparentemente leviano e talvez até meio apelativo, culmina com o giro de câmera que lança o personagem de Rodrigues na Cidade de Deus de 1966, um assentamento precário nos cafundós de Jacarepaguá montado pela prefeitura depois das enchentes (que perduram até hoje), dos incêndios criminosos e, claro, para liberar o resto dos imóveis ainda ocupados por gente miserável de todo o país entre a Central do Brasil e a vizinhança da Praça Quinze de Novembro, os últimos remanescentes do novo ordenamento urbanístico proposto e levado a termo por Pereira Passos (1836-1913), alcaide de 1902 a 1906.

Obra-prima que é, “O Iluminado” continua a ser um dos melhores filmes de todos os tempos. Quando começa a escutar a admirável trilha do maestro polonês Krzysztof Penderecki (1933-2020), criada a partir de trechos de obras de gênios do quilate de Béla Bartók (1881-1945), Hector Berlioz (1803-1869) e György Ligeti (1923-2006), o espectador começa a ser envolvido numa bruma densa de mistério e apreensão que, mesmo sem saber onde vai dar, sugere qualquer coisa de macabro. Nunca se fica indiferente ao talento de Stanley Kubrick (1928-1999), e aqui, o cineasta faz justiça à fama e oferece um espetáculo completo, ocultando nas entrelinhas a brutalidade do que quer dizer. A cada vez que se assiste a “O Iluminado”, descobre-se, como se dá com todo clássico, algo de novo, quiçá de transformador, de assombroso em sua originalidade, predicados que juntam-se à coragem de um diretor que dominava seu ofício como poucos. História COM fantasmas, e não DE fantasmas, o enredo usa o cenário assustador como um imenso labirinto, onde somos jogamos como a família disfuncional que protagoniza esse conto de terror iconoclasta e circular, no qual tudo está sempre escancarado — embora se custe a acreditar no que Kubrick pretende transmitir. As saborosas esquisitices de “O Iluminado” perduram até a impactante cena, modificada de última hora por Kubrick, com Jack Nicholson mais e mais possuído por Jack Torrance, remetendo ao Randall McMurphy de “Um Estranho no Ninho” (1975), de Miloš Forman (1932-2018), ou prenunciando o Coringa do “Batman” (1989), de Tim Burton, um de seus tantos grandes papéis.Como todo filme memorável tem suas histórias de bastidores infelizes, Shelley Duvall (1949-2024) nunca escondeu o justo ressentimento de ter sido apagada pela crítica, que só falou de Kubrick e suas obsessivas centenas de tomadas para uma única cena e Nicholson. Duvall morreu ainda meio amargurada, em 11 de julho de 2024, e sem Wendy “O Iluminado” (e o próprio cinema) teriam sido outra coisa. Apenas um bom filme, e não esse monumento sem igual.

“Laranja Mecânica” tornou-se um cinquentão com tudo em cima. A adaptação feita para o cinema de Stanley Kubrick sobre o livro de Anthony Burgess ainda é uma ode ao livre pensar. Permanece como sempre fora: um soco no estômago, que deixa o espectador sem fôlego e o derruba do pedestal de suas convicções. Alexander DeLarge é um lobo em pele de lobo, por mais mavioso, envolvente e inofensivo que possa parecer. O protagonista, vivido por Malcolm McDowell, é verdadeiramente do diabo, só não se sabe quando e em que circunstâncias o mal se apoderou dele. Uma leitura marxista do filme — que não segue à letra a história original publicada por Burgess — daria a entender que o rapaz oriundo do lumpemproletariado inglês dos anos 1970 teria muito a dizer sobre a besta que Alex se tornara, e que o capitalismo, o malvado favorito da intelectualidade de esquerda em qualquer parte da esfera terrestre, a despeito da época, em querendo regenerá-lo, só estaria sanando um problema que o próprio sistema capitalista criou. Nada mais simplista. Nada mais preconceituoso. Alex é dotado de uma natureza depravada, perversa, monstruosa, como outros drugues de sua gangue, e deve ser contido. Aliás, ele só vai parar no reformatório porque traído pelos companheiros de vadiagem, o que, desta feita à luz do conservadorismo, significaria que bandidos são bandidos e não se pejam em abandonar o navio ao menor sinal de pique, delatando-se uns aos outros. Lá, submete-se a um tal Tratamento Ludovico, uma terapia revolucionária que o destitui de qualquer ímpeto de violência, isto é, o deixa impossibilitado de reinserir-se na sociedade, em boa medida composta de indivíduos violentos e insanos. O caráter distópico da história é a parte mais doce — ou menos amarga — dessa laranja e, como toda distopia, profética. Todos temos um Alexander DeLarge chafurfando no mais recôndito de nós e cada um é o maior responsável por mantê-lo restrito a esse lugar.

O que mais chama atenção em “Meu Ódio Será Sua Herança” é a ausência de cercas e muralhas na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Assim mesmo, a falta de grandes novidades no filme de Sam Peckinpah (1925-1984) jamais empanou o brilho do cineasta, um dos mais prolíficos da velha Hollywood, e aqui, o diretor sabe muito bem o que deve fazer para manter o interesse do público. Peckinpah lida com limitações parecidas com as de mestres do gabarito do John Schlesinger (1926-2003) de “Perdidos na Noite” (1969) ou do John Huston (1906-1987) de “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) no gênero inaugurado por Edwin S. Porter (1870-1941) com “O Grande Roubo do Trem” (1903), mas se sai galhardamente, seguro ao conduzir seu longa pela espiral de reviravoltas algo pomposas que encantam a audiência. O diretor e o corroteirista Roy N. Sickner (1928-2001) absorvem do texto de Walon Green a natureza dos anti-heróis no tempo das diligências, retratando com fidedignidade o caos de uma terra sem lei. Peckinpah, o Bloody Sam, o Sam Sangrento, fez questão de bater de frente com os mitos mais caros ao inconsciente coletivo da América, o que custou-lhe ver seu trabalho voltar à sala de montagem após o lançamento comercial. Condenado por incitar uma violência que dorme em cada espírito humano desde o princípio dos tempos — e tanto pior naquela conjuntura —, o filme foi temporariamente proibido na Irlanda. Na Alemanha, a cópia em VHS suprimiu cenas inteiras, enxugando o resultado final em cerca de meia hora. A acusação de esteta do sangue, no entanto, não cabe. Os outros faroestes de Peckinpah, todos memoráveis, navegam pela diversidade de gêneros, o que qualquer crítico honesto pode reparar. Em 2018, a Warner Bros. anunciou um remake, a cargo de Mel Gibson e do corroteirista Bryan Bagby, mas a ver pelo tempo já transcorrido entre gesto e ação, Peckinpah continua incômodo. Ainda bem.

Malgrado continuem a surgir filmes que arranquem do chão a escassa poesia do mundo, não adianta: houve uma época em que o cinema era, sim, mais suave, mais inspirado, como um bolo cheio de camadas do qual poderia pular uma bela mulher convidando todos a cair na dança. “Cantando na Chuva” é a própria encarnação daquela verdadeira Era de Ouro de Hollywood, em que até a sucata era preciosa. A MGM só precisou encomendar uma nova música para que o projeto de uma história que atravessaria a segunda metade do século 20 saísse do papel encantando gerações com seu jeito singelo de falar das eternas inseguranças de cada um, expondo também uma brusca nova realidade com que a indústria cinematográfica teve de lidar — e que a transformou para sempre. Stanley Donen (1924-2019) e Gene Kelly (1912-1996), dois gênios em verter movimento em ritmo e fazer dessa alquimia a fórmula para o entretenimento sofisticado de que tantos sentem falta. “Cantando na Chuva” é muito mais que o número que empresta o nome ao longa, o conhecidíssimo solo em que Kelly sapateia sob uma tormenta artificial que alaga o estúdio, sapateando e subindo e descendo o meio-fio para no final ser interpelado pelo policial e presentear um homem que vem no sentido contrário com o guarda-chuva que não usara senão como adereço cênico. Donen e Kelly nos oferecem uma viagem no tempo, a um tempo onde a graça tinha importância.

“…E o Vento Levou” (1939), dirigido por Victor Fleming, é uma obra monumental do cinema clássico americano, que combina grandiosidade técnica e narrativa épica. O filme narra a saga de Scarlett O’Hara, uma jovem sulista obstinada, cuja determinação beira a obsessão, e seu amor não correspondido por Ashley Wilkes, em meio à devastação da Guerra Civil e à reconstrução do Sul. A produção impressiona pela direção de arte, figurinos luxuosos e cenografia detalhista, que recriam de forma memorável a era antebellum. Vivien Leigh (1913-1967) oferece uma performance icônica, transmitindo simultaneamente fragilidade e força, enquanto Clark Gable (1901-1960) encarna um Rhett Butler carismático e complexo. O roteiro de Oliver H.P. Garrett (1894-1952) e Sidney Howard (1891-1939) adapta habilmente o romance de Margaret Mitchell (1889-1949), equilibrando drama, romance e elementos históricos. Entretanto, o filme também é alvo de críticas contemporâneas devido à sua representação idealizada da escravidão e estereótipos raciais. A cinematografia de Ernest Haller, com o uso de Technicolor, contribui para o impacto visual, transformando cenas como a destruição de Tara em momentos inesquecíveis. A trilha sonora de Max Steiner complementa a narrativa, intensificando emoções e tensões dramáticas. A obra dialoga com questões de identidade, sobrevivência e resistência feminina. Apesar de seu tom romântico e melodramático, há profundidade na exploração das consequências humanas da guerra e da perda. O filme permanece como referência de Hollywood, influenciando gerações de cineastas e espectadores. É uma mistura fascinante de glamour, tragédia e complexidade emocional. O equilíbrio entre espetáculo e intimidade faz dele um marco cultural. Em última análise, “…E o Vento Levou” é tanto um retrato da sociedade americana do final do século 19 quanto um estudo atemporal de paixão, ambição e resistência.