O filme mais bonito que você verá na Netflix neste mês acaba de estrear Divulgação / Twentieth Century Fox

O filme mais bonito que você verá na Netflix neste mês acaba de estrear

A cultura pop nunca mais foi a mesma depois de Lassie. A rough collie, protagonista de “A Força do Coração” (1940), romance do britânico Eric Knight (1897-1943) nascido do conto homônimo publicado no “Saturday Evening Post” em 1938, marcou gerações, a ponto de, metonimicamente, designar todos os cachorros daquela raça — e até os vagamente parecidos. Por óbvio, Hollywood não deixaria a oportunidade passar e, Pal, um macho, deu vida à adorável cadelinha em “Lassie, a Força do Coração” (1943), de Fred McLeod Wilcox (1907-1964), um dos primeiros trabalhos de ninguém menos que Elizabeth Taylor (1932-2011), contando então onze anos. “A Arte de Correr na Chuva” é outro dos tantos filmes a desvendar a relação entre canídeos e homo sapiens sapiens, chegando a uma conclusão talvez exagerada em seu lirismo, mas por isso mesmo arrebatadora: os cerca de vinte mil anos de amizade entre nós e os cães vêm de outras vidas. O roteirista Mark Bomback adapta o best-seller homônimo do produtor Garth Stein publicado em 2008 de modo a dar ênfase à atávica lealdade de um mascote invulgar, e o diretor Simon Curtis elabora alegorias de forte carga poética, nas quais um filhote atravessa a jornada de um homem que precisa desacelerar e rever suas atitudes.

Cachorros sonham e têm aspirações, igualzinho  ao mais ordinário dos homens. O de Enzo, um golden retriever criado para fins estritamente comerciais, é encontrar um tutor que o ame e leve-o para uma casa espaçosa, com um amplo gramado no quintal e muitas horas para brincar. Denny Swift cumpre só o primeiro requisito, mas ainda assim resolve que é chegado o momento de partilhar sua vida com alguém, mesmo que se trate de uma pequena bola de pelo, que, ele julga, nunca poderá entender seus problemas. Esse é o pulo do gato em “A Arte de Correr na Chuva”, e não é preciso muito para que o espectador se convença da habilidade “paranormal” de Enzo de ler os pensamentos de Denny e, a seu modo, tornar seu dia a dia menos penoso. Enzo, o cão filósofo, é capaz de verdadeiras epifanias ao atentar para as expressões de seu humano, e dessa maneira o bicho vai desvendando os mistérios dessa outra espécie, pretensamente mais evoluída — talvez a grande mancada de Stein, que Curtis sustenta, seja insistir que os cães venham ao mundo seguindo uma espécie de protocolo de melhoramento espiritual, cujo último estágio é a condição humana. Tenho cada vez certeza de que é justo o inverso.

A justificativa para o título é o emprego de Denny, um piloto de automobilismo cuja preferência são as pistas molhadas, e brasileiros recebem um conforto a mais nas muitas ocasiões em que Ayrton Senna (1960-1994) é citado. Denny está longe de sequer emular o talento de Senna, e aos poucos o diretor concentra-se nas aflições bastante idiossincrásicas do protagonista, expostas de modo tocante, porém dosado, por Milo Ventimiglia; o personagem central balança entre a ânsia de ter e o tédio de não conseguir nunca, e sua salvação parece estar fora do cockpit. É aí que surge Eve, a namorada com quem termina por se casar, e o longa deriva para cenas ora reflexivas, ora ligeiras sobre os prazeres e os pesares da rotina doméstica, levados ao extremo quando nasce Zoë, a filha do casal. Denny agora passa a trabalhar dobrado, e Enzo começa a se ressentir de sua ausência, tendo de também lidar com emoções nada caninas como ciúmes e intolerância. Ninguém se surpreende que tudo se acerte e o doce Enzo ache para Eve um cantinho em seu coração peludo, e seja totalmente dedicado a “criar” Zoë, que, feito o pai, tem nele um leal escudeiro. Sobretudo no momento em que um evento funesto abate-se sobre os três.

Filmes protagonizados por animais sempre hão de receber do público a imediata atenção que histórias sobre homens comuns e mulheres corajosas levam bons minutos para conquistar — exceção reservada às tramas sobre crianças-prodígio ou as que enfrentam doenças inexplicáveis, de que muitas vezes acabam não escapando. É impossível não sorrir e não perceber um nó na garganta inúmeras vezes no decorrer das duas horas, suscitados pela inocência e pelo afeto instintivo de uma criatura como Enzo, boa parte do tempo “interpretado” por Palmer, um golden de cinco anos, quase sempre junto com Ventimiglia. Aparecendo muito menos, Amanda Seyfried rouba a cena na segunda metade do enredo, encarnando uma Eve alquebrada pelo câncer terminal que desaguará na questão jurídica sobre a guarda de Zoë que põe Denny e os pais da finada esposa em trincheiras opostas. Curtis volta “A Arte de Correr na Chuva” para o que pode haver de mais trivial na essência de cada um, buscando respostas que os cães trazem em seu DNA privilegiado. Na próxima encarnação, quero vir cachorro.

Filme: A Arte de Correr na Chuva
Diretor: Simon Curtis
Ano: 2019
Gênero: Comédia/Coming-of-age/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.