O amor é um tormento

O amor é um tormento

Enquanto mordiscava o lanche, Orlando se perdia em pensamentos penosos. Ainda era cedo da manhã quando a perspicaz atendente notou o seu acabrunhamento. 

— Pão francês com mozarela na chapa… Por que o senhor pede sempre a mesma coisa, doutor Orlando? Tem tantas gostosuras na lanchonete pra saborear.

— Eu gosto de pão francês com mozarela na chapa, Maranhão. Não se trata de desfeita. É questão de preferência mesmo.

— Cada doido com as suas manias.

— Como anda a patroa Dona Nair? 

— Nunca mais foi a mesma desde as fraturas. Para piorar, anda variando. Parece que é Alzheimer. As filhas dizem que ela não voltará mais à lanchonete, a não ser, pra passear, passar algum tempo e rever os antigos clientes. Se é que a pobrezinha vai se lembrar deles.

— Para mim, a demência é a pior das doenças. Essa desconexão da mente com o mundo e com as pessoas a sua volta é muito cruel. Me serve um café coado, sem açúcar, por gentileza.

— De amarga já não basta a vida, meu bom doutor?

— Ainda prefiro o meu café sem açúcar, Maranhão. Vê se não implica.

— Que bicho te mordeu, doc? Tá azedo hoje.

— Ando amargurado. Mamãe está muito doente.

— Que pena, doutor. Qual a idade da sua mãezinha?

— Oitenta e oito.

— Oitenta e oito?

— Oitenta e oito.

— Que benção. Minha mãe morreu aos trinta e sete. De parto normal, ou melhor, de parto anormal.

— Sinto muito, Maranhão.

— Parto sem recurso, no meio do mato, em região ribeirinha, sabe como é. O terror no fim do mundo.

— Que idade você tinha na época?

— Doze.

— Doze?

— Doze.

— Meu Deus… Deve ter sido difícil pra você e os seus irmãos. Ser criado sem a presença da mãe é dose pra leão.

— Não foi fácil, mas a gente se virou. Papai saiu distribuindo filho pra tudo quanto era lado da família. Morando com ele mesmo ficaram só dois menino-homem.

— Vocês são quantos irmãos? 

— Dez. 

— Dez?

— Oito. Na verdade, só restaram oito. Dois morreram logo no comecinho da vida. Mal de Sete Dias. Diarreia. Doença de gente pobre.

— Quem tomou conta de você?

— Fui morar com uma tia, irmã de meu pai, em Carolina.

— Foi bem acolhida?

— Até demais, doutor. O esposo da tia me tirou.

— Tirou você? Como assim?

— Eu me perdi com ele.

— Você se perdeu com ele?

— Vou ter que desenhar pro senhor entender, doutor? Ele maliciou, abusou de mim, transou comigo. Foi o meu primeiro homem. Forçado, mas foi.

— Meu Deus…

— Meu Deus. Meus Deus. Meu Deus. Não sei por que o senhor vive dizendo “Meu Deus”, sendo o ateu declarado que é.

— Não faço propaganda das minhas fraquezas, Maranhão. E você não denunciou os abusos deles para a sua tia?

— Falei com ela um par de vezes, mas, ela disse que era fantasia da minha cabeça, que eu estava confundindo as coisas, que a família toda era evangélica, temente a Deus e coisa e tal. Então, ela disse que me perdoava e ficou o dito pelo não dito.

— Perdoar você? Mas, você foi a vítima, Maranhão. Que mulher miserável. Morou com eles até que idade?

— Dezesseis.

— Dezesseis?

— Dezesseis. Tive que dar outro rumo na minha vida. Porque os enteados já estavam se engraçando pro meu lado, a fim de tirar proveito também. Daí, já era demais né, doc? Sou uma mulher, não sou um animal. Catei as minhas coisinhas, pulei a janela, peguei um ônibus e vim parar aqui no Goiás, a terra do pequi.

— Quem te ajudou? Conhecia alguém na capital?

— Morei uns tempos com uma amiga que tinha se mudado fazia pouco tempo. Tava estudando pro vestibular. A colônia maranhense é grande no Goiás, o senhor sabe.

— De fato. Cresce mais do que unha do pé.

— O senhor é engraçado, doc. Já tá voltando ao normal que eu gosto. O que tem a sua mãezinha?

— Aneurisma. Um aneurisma no coração. 

— O que é um aneurisma?

— Uma espécie de dilatação anormal da artéria. No caso dela, um grave defeito na principal artéria que sai do coração. Já viu câmara de ar de bicicleta, quando fica com um calombo, uma dilatação, tipo um estufamento prestes a estourar?

— Vixi! Sei. E é perigoso, doutor?

— Se romper, sim. 

— A pessoa cai da bicicleta e não pedala nunca mais…

— É mais ou menos isso, Maranhão — passados tantos dias de apreensão, Orlando finalmente voltava a sorrir.

— Coitadinha. Se Deus quiser, isso não vai suceder, meu doutor. Aneurisma não tem conserto?

— Tem, mas é muito arriscado. Ainda mais, por se tratar de uma pessoa da idade dela. 

— Eita! Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O que o senhor vai fazer?

— Terminar o meu pão com mozarela. 

— Não desconverse, doc.

— Ainda não sei, Maranhão. Só Deus sabe.

— Mas, o senhor não acredita em Deus, homem. 

— Então, me serve outro cafezinho coado, sem açúcar, por favor. 

— De amarga, já basta a vida, doutor Orlando.

— Pode ser, Maranhão. Quisera me importar menos. O amor é um tormento. 

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.