O filme, lançado em 1994, se sustenta num eixo desconfortável: o menino de onze anos que carrega mais do que qualquer adulto suportaria. Mark Sway (Brad Renfro) vê e ouve demais, presencia o suicídio de um advogado alcoólatra que, em seus delírios finais, revela a localização de um corpo que incrimina a máfia. O segredo não é um troféu: é uma armadilha. A partir dele, o garoto se torna peça de negociação entre FBI, procuradores federais, mafiosos e advogados. A infância, como categoria, desaparece; em seu lugar, instala-se um sujeito forçado a raciocinar como adulto, mas sem poder escapar da vulnerabilidade infantil.
Joel Schumacher, mais lembrado por excessos estilísticos em filmes posteriores, encontra aqui uma disciplina estética incomum em sua carreira. “O Cliente” não é marcado por gestos de virtuosismo visual; ao contrário, é um filme de proximidade, de rostos suados em salas apertadas, de corredores onde o som dos passos é mais ameaçador do que qualquer arma. A câmera acompanha a respiração dos personagens, quase sempre em espaços que se fecham: tribunal, hospital, casas precárias, escritórios de governo. O suspense nasce da falta de ar, não da expectativa de revelação.
A atmosfera de Memphis, onde o filme foi rodado, reforça essa sensação de clausura. Não há respiro no calor úmido do sul americano, nem na paisagem urbana atravessada por uma desigualdade visível. Schumacher filma a cidade como um organismo doente: nada ali é neutro. Cada esquina é carregada de desconfiança, cada sombra parece prenunciar um ataque. A fotografia não busca beleza, mas densidade, como se as imagens fossem impregnadas pelo peso da história local, por uma herança cultural que mistura violência, racismo, corrupção política e precariedade social.
Susan Sarandon, no papel de Reggie Love, é o coração duro do filme. Sua advogada não é figura materna tradicional nem heroína invencível; é uma mulher quebrada, em reconstrução, que encontra no menino uma razão para sustentar sua ética em um ambiente onde a lei funciona mais como espetáculo que como garantia de justiça. A força de Sarandon está na contenção, no modo como transmite cansaço sem abdicar de firmeza. Sua atuação foi reconhecida com uma indicação ao Oscar, e é fácil entender o motivo: ela encarna não apenas uma personagem, mas a própria crítica ao sistema jurídico encenado no filme.
Tommy Lee Jones, como Roy Foltrigg, o procurador, opera no extremo oposto: falastrão, autoconfiante, político antes de jurista. É a caricatura do sistema que transforma tragédias em capital midiático. Schumacher, ao confrontar Sarandon e Jones, encena mais do que um duelo jurídico: encena a batalha entre duas visões de mundo. De um lado, a tentativa de preservar um mínimo de dignidade; de outro, a vontade de capitalizar cada segredo, cada testemunho, cada dor infantil.
Brad Renfro, em sua estreia, sustenta o filme com uma atuação surpreendente para a idade. Seu Mark Sway não é a criança inocente a ser salva, mas uma figura desconfiada, quase insolente, marcada por uma dureza precoce. Ele olha os adultos como inimigos potenciais, e essa escolha interpretativa desarma o espectador: não há catarse possível, não há sentimentalismo barato. Há, sim, a brutalidade de uma infância roubada. O fato de Renfro, anos depois, ter sua vida interrompida por tragédias pessoais empresta ao filme um peso retrospectivo quase insuportável, como se a ficção tivesse pressagiado a biografia.
O ritmo do filme oscila entre intensidade e exaustão. Schumacher não tem pressa, insiste nos procedimentos legais, nas repetições burocráticas, nas idas e vindas que parecem arrastar. A lentidão, longe de ser defeito, traduz a experiência real do sistema de justiça: uma máquina que não se move pelo drama humano, mas por papéis, audiências, formalidades. É nesse contraste que o filme encontra sua força: o garoto em desespero de um lado, a lentidão institucional do outro.
É importante lembrar que “O Cliente” surge em um momento específico do cinema norte-americano: os anos 1990 foram férteis em adaptações de John Grisham, um autor que transformou o thriller jurídico em best-seller global. Filmes como “A Firma” (1993), “O Dossiê Pelicano” (1993) e “Tempo de Matar” (1996) consolidaram esse ciclo. O diferencial de “O Cliente” é sua recusa ao glamour. Enquanto outros filmes dessa leva apostavam em protagonistas adultos e narrativas de ascensão ou queda, Schumacher coloca uma criança no centro, expondo de forma mais crua a violência estrutural que atravessa o sistema legal.
Essa escolha estética e narrativa amplia a relevância cultural do filme. Não é apenas uma história de máfia; é uma parábola sobre vulnerabilidade. Em um tempo em que a sociedade americana discutia violência urbana, abusos institucionais e o impacto da mídia na justiça, “O Cliente” oferecia um espelho incômodo: mostrava que até a inocência infantil podia ser tragada por engrenagens jurídicas e midiáticas que não conhecem limites.
O filme não oferece catarse. Não há triunfo absoluto, nem derrota total. O que fica é a sensação de desgaste, de um corpo coletivo doente. Mark sobrevive, mas à custa de carregar um fardo para o qual nunca esteve preparado. Reggie o protege, mas perde parte de si nesse processo. O sistema jurídico segue intacto, indiferente. Essa ausência de resolução fácil é, paradoxalmente, a grande força de “O Cliente”.
★★★★★★★★★★