O desejo é um cão dos diabos

O desejo é um cão dos diabos

Edward chegou pilhado à Vara da Família, onde trabalhava como juiz.

— O que aconteceu, Meritíssimo? Vossa Excelência me parece mal… — comentou Stuart, o assessor.

— Estou em apuros, Stu. Algo terrível está prestes a vir à tona.

— É algum assunto que eu possa saber? Creia-me: sou um bom ouvinte.

— O caso é gravíssimo, meu caro. Trata-se de um escândalo. Estou arruinado.

— Calma, juiz Edward. O senhor sabe que pode contar comigo.

— Sim. Eu sei. Você é um bom homem, um confidente fiel.

Edward suava em bicas. O jovem assessor temia que ele pudesse sofrer um colapso. Puxou-o pelo braço para dentro do gabinete, onde poderiam conversar de forma mais reservada. Fechou a porta e lhe serviu Cavalo Branco.

— Vossa Excelência precisa se acalmar ou vai acabar enfartando.

— Caí numa cilada, Stu.

— Explique, por favor.

— Flagraram-me nas docas.

— Como assim “flagraram-me nas docas”? O que significa?

— Fraquejei novamente, Stu. Reincidi num pecado capital e acabei desmascarado por um malandro que também frequenta as docas. Reconheceu-me, apesar da peruca e… Você sabe… Toda aquela indumentária andrógina de que faço uso.

— Não me diga que retornou ao Buraco Azul.

— É uma espécie de vício, Stu. Confesso a minha fraqueza.

— O que houve afinal?

— Alguém tirou fotos e passou a me extorquir.

— Santo Cristo!

— Pegaram-me em trajes menores, ambíguos, inadequados para um homem da minha envergadura moral.

— Travestiu-se, Edward?

— Travesti-me.

— Jesus!

— Deus nunca vai me perdoar.

— Deus é Pai. Ele está testemunhando o seu sofrimento e já o perdoou.

— Você realmente é o meu porto seguro, querido Stu.

— Helena já sabe?

— Helena já sabe. Contei-lhe tudo. Ficou furiosa.

— Não era para menos.

— Não bastasse sustentar as aparências de um casamento fracassado, agora mais essa. Sou um crápula, Stu. Eu não presto.

— Tudo se resolve, Edward. Foi à polícia?

— Não. Não fui à polícia.

— Você precisa denunciar os fatos às autoridades policiais, Edward. Extorsão é crime.

— Fiquei com medo da história vazar. Sou uma figura pública. Juiz. Pastor. Membro honorário do Partido Patriota. Estou sem chão, Stu. Penso em me matar, sabia?

— Não diga bobagem. Seus filhos conhecem a sua condição?

— Não. Saberão do meu desvio moral da pior maneira possível: pelos noticiários e pelas redes sociais.

— Não se pode lutar contra a própria natureza, Eddie.

— Que tipo de líder religioso frequenta as docas para se esbaldar com outros homens? Sou um miserável. O que devo fazer, Stu?

— Diga a verdade. Você deve dizer a verdade e se libertar desse personagem que carrega há tantos anos.

— Não posso fazer isso. Sempre recriminei a luxúria, a homossexualidade e outras perversões sexuais. Sou um ferrenho defensor da família, da moral e dos bons costumes.

— Eddie, acorda. Essa conversa não cola mais. Chega de hipocrisia. Pense bem: se essa história realmente vier à tona — pode ser que nunca aconteça —, você estará diante de uma oportunidade de ouro para dar um “Reset” na sua vida. Pare de se enganar e de mentir para as pessoas que você ama.

— Nunca menti pra você, Stu. Eu juro.

— Você teve acesso aos vídeos?

— Sim. São comprometedores. O hediondo exigiu dinheiro, muito dinheiro, para não compartilhar as imagens. Eu devia ter pago. Fui um tolo.

— Ouça bem, Eddie. Quando essa coisa toda estourar — se é que vai estourar — você vai convocar a imprensa e fazer um pronunciamento. Aproveite a chance que Deus está lhe dando para recomeçar. Vai se esconder nas sombras até quando?

— Você é uma criatura adorável, Stu. Só Deus sabe o que seria de mim sem você.

— Diga a verdade, Edward. Saia de casa. Pode morar comigo uns tempos, pelo prazo que for necessário, até que as coisas se acalmem.

— Eu te amo, Stu.

— Não diga isso, Edward. A nossa história, juntos, já terminou.

— Eu te amo, cara. Sinto muito. Sinto muito mesmo.

— Eu também te amo, Eddie. Como se ama um amigo. Vai dar tudo certo. Mas, você precisa colocar um ponto final na mentira.

— Me perdoe, Stu. Me perdoe. Deus tenha piedade de mim.

A conversa foi abruptamente interrompida pela entrada de policiais no gabinete, onde Stuart foi preso pelo crime de extorsão.  

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.