Há crimes que não se resolvem. Apenas continuam olhando de dentro da memória. A justiça hesita, o tempo não. E há olhos que jamais aprendem a esquecer o que viram.
Entre o peso do que foi e o susto do que persiste, há histórias que recusam o sossego da conclusão. O passado, às vezes, é só uma porta mal trancada. “O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, reabre essa porta sem pressa, nem piedade. Trata de um crime, sim, mas também de tudo aquilo que não se resolve com uma sentença. As coisas que ficam: um olhar, uma frase interrompida, uma ausência mal digerida. É sobre o que resta, e sobre a impossibilidade de seguir em frente quando a memória se recusa a cooperar.
Em seu segundo Oscar, a Argentina não levou apenas uma estatueta. Levou à consagração um modelo narrativo que integra alta literatura, suspense policial e crítica social com um rigor incomum. “O Segredo dos Seus Olhos” não é um thriller convencional. É um ensaio ficcional sobre as consequências do tempo na experiência da verdade. Campanella, respaldado pelo romance de Eduardo Sacheri, recorre à estrutura do mistério não para elucidar um crime, mas para dissecar os vestígios humanos que ele deixou. A pergunta não é “quem matou?”, mas “por que ainda dói?”.
A trama se organiza entre dois eixos temporais, 1974 e 2000, que se entrelaçam como camadas de um mesmo trauma. No centro está Benjamín Esposito, interpretado por Ricardo Darín, oficial de justiça aposentado que decide escrever um livro sobre o caso Morales, em que investigou o estupro e assassinato brutal de uma jovem mulher. Ao reabrir as gavetas da memória, percebe que os fatos resistem à lógica linear. O que era relato vira obsessão. O livro que ele escreve é, na verdade, uma tentativa de entender sua própria omissão. Judicial, afetiva, histórica.
O roteiro é cirurgicamente construído para escapar da previsibilidade. É um filme sobre reconstrução, mas que se recusa à didática da reconstituição. Fragmentado, sim, mas nunca confuso. O tempo é manipulado com maturidade dramatúrgica, com elipses que não esvaziam, e sim adensam o conteúdo emocional. O ritmo é de uma literatura bem editada: há silêncio onde há dor, há pausa onde há fenda. Campanella dialoga com a estética da incerteza de Jorge Luis Borges, os labirintos do não dito, o eterno retorno das perguntas mal formuladas, e com a lógica implacável de Edgar Allan Poe, onde o detalhe minúsculo carrega a sentença. A referência a Um Corpo que Cai, de Hitchcock, é precisa. Assim como Scottie, Esposito é perseguido por uma falha. Não uma falha física, mas ética. Uma covardia antiga que se disfarça de nostalgia.
A câmera de Campanella não apenas observa. Ela investiga. Uma das grandes virtudes do filme é justamente recusar o espetáculo e investir na densidade. A sequência do estádio, rodada em plano-sequência e celebrada por seu virtuosismo técnico, é também uma síntese estética do filme. O caos aparente, a organização secreta, a urgência silenciosa. Mas os momentos mais reveladores são aqueles em que nada parece acontecer. Um rosto que desvia. Um silêncio que se prolonga além do necessário. Um olhar que hesita.
O elenco contribui decisivamente para a densidade dramática. Ricardo Darín constrói Esposito como um homem que nunca se perdoou, embora nunca tenha confessado. Um homem assombrado menos pela culpa do que pela omissão. Soledad Villamil, no papel de Irene, oferece uma contrapartida moral. É nela que reside a possibilidade de equilíbrio, mas também a angústia do que nunca foi dito. O amor entre eles, sempre à beira do acontecimento, é uma espécie de território neutro onde a verdade não ousa entrar.
O que Campanella filma não é o crime, mas a permanência do crime na vida dos que sobreviveram a ele. A ditadura militar argentina é um fundo de quadro, uma ameaça que nunca se explicita. Mas é nessa recusa em transformar o terror em protagonista que o filme alcança sua densidade ética. Porque tudo está ali. O sistema que falha. A justiça que se dobra. A impunidade como regra. O trauma como herança. Nada disso é verbalizado. O espectador sente, antes de compreender.
O final, inquietante, é exemplar. Não há catarse, nem redenção. O castigo imposto ao criminoso é menos justiça do que metáfora. Um cárcere privado onde o tempo é a única pena possível. Um espelho cruel do que acontece a quem não consegue esquecer. O passado, afinal, não é algo que se supera. É algo que se aprende a suportar. A vingança, nesse contexto, é só a forma mais perversa de memória.
O título do filme não é retórico. Os olhos que observam, que julgam, que silenciam, são a grande chave simbólica da narrativa. Em várias cenas, a verdade não está no que é dito, mas no que se evita olhar. A câmera se demora nesses olhos como quem tenta decifrar o indecifrável. Porque o segredo não está apenas no crime. Está no amor reprimido, no desejo não nomeado, na covardia cotidiana. O segredo está naquilo que se esconde por trás da aparente normalidade.
Assistir a “O Segredo dos Seus Olhos” é aceitar o risco de ser observado de volta. O filme não quer agradar, nem confortar. Ele quer lembrar. E lembrar, aqui, é um ato de desconforto. Campanella entrega uma obra de rara inteligência estética, com precisão formal e profundidade ética, que transforma o espectador em cúmplice. Não do crime, mas do silêncio que o permitiu. Há filmes que se encerram no último plano. Este continua. Porque há segredos que, uma vez vistos, não se desfazem. E olhos que, uma vez abertos, jamais voltam a se fechar.
★★★★★★★★★★