Vinte e quatro anos depois, Ridley Scott volta ao lugar que o consagrou. Mas a Roma de “Gladiador 2” não é mais uma paisagem mitológica a ser contemplada. É uma estrutura política apodrecida por dentro, um organismo exausto que não sangra mais com raiva, mas com método. Scott, aos 87 anos, insiste — como só insistem os que ainda querem responder a uma pergunta que ninguém mais está fazendo. Sua nova investida não quer repetir o primeiro filme; quer desmontar o que restou dele. O resultado é um épico ambicioso, irregular, porém necessário. O que o diretor propõe não é a continuação de uma glória, mas o inventário de uma ruína.
A história começa no ano 180 d.C., quando o Império Romano ainda se estende da Germânia às margens do deserto africano, e Marco Aurélio, já desgastado pela guerra, tenta encerrar suas campanhas no Norte. Ao contrário de “Gladiador”, que abre com uma batalha para seduzir o espectador, aqui o início é oblíquo. A violência existe, mas é contida. Lucius Verus, que era criança no primeiro filme, agora é homem, interpretado com contenção e firmeza por Paul Mescal. Exilado na Numídia, ele vive como estrangeiro entre o próprio sangue. Quando sua vila é atacada por forças romanas lideradas por Acacius (Pedro Pascal), sua vida é destruída — sua esposa é assassinada, sua identidade é apagada. E ele, como antes Maximus, é lançado à escravidão. A repetição não é descuido; é estrutura. Scott quer mostrar que o império se alimenta das mesmas tragédias. Basta mudar os nomes.
Mescal entrega um Lucius de silêncios calculados. Seu corpo é mais eloquente que sua fala, e isso é mérito. Ao contrário do Maximus de Russell Crowe, Lucius não é um líder. É um homem em suspensão. Sua força não está na liderança, mas na recusa. Ele não quer voltar a Roma. É Roma que insiste em puxá-lo de volta. Pedro Pascal, como Acacius, cria um vilão mais burocrático que megalomaníaco. É a encarnação da violência estatal: limpa, objetiva, sem desejo de espetáculo. Se Commodus era uma criança com coroa, Acacius é um executivo com espada. Isso, no entanto, cria um problema de ritmo narrativo. A ausência de um antagonista verdadeiramente desequilibrado retira da trama parte do atrito emocional que sustentava o primeiro filme. A frieza de Acacius funciona em teoria, mas esfria o filme no miolo, quando ele mais precisava ferver.
É nesse ponto que Denzel Washington entra em cena. Seu Macrinus, ex-escravo e atual dono de gladiadores, é o personagem mais interessante da obra. Carismático, calculista, pragmático, ele é a ponte entre o mercado de sangue e os bastidores da política. Sua presença muda o eixo do filme, deslocando o centro da narrativa para algo mais maquiavélico. Ele enxerga em Lucius um instrumento, não uma missão. E, nesse gesto, revela a verdadeira alma do império: todos são úteis, até que deixem de ser. Washington atua com economia e precisão. É menos protagonista do que vetor. Seu personagem não precisa de muitos diálogos para impor densidade. Basta olhar, e o filme se reorganiza ao redor dele.
Scott filma como quem conhece cada pedra do Coliseu. As cenas de arena são visualmente impressionantes, como se fossem desenhadas à mão, uma a uma. A coreografia dos combates, a escolha dos ângulos, a textura da luz — tudo revela um artesanato estético que resiste à tendência contemporânea do excesso digital. Mas há algo curioso: por mais grandiosas que sejam essas cenas, elas nunca alcançam o mesmo impacto emocional da sequência original. Falta tensão, talvez, ou talvez sobre autoconsciência. É como se o filme soubesse que o público espera algo épico, e por isso mesmo evitasse entregar com entusiasmo. A contenção, nesse caso, é uma faca de dois gumes. Evita a caricatura, mas compromete o clímax.
A relação entre Lucius e Lucilla (Connie Nielsen) oferece um dos poucos momentos de ressonância emocional verdadeira. Há uma culpa compartilhada, um passado espesso e mal resolvido que retorna como espectro. Nielsen, mesmo com pouco tempo de tela, carrega nos olhos o luto acumulado de quem viu o Império passar por cima de tudo o que tentou preservar. O roteiro, nesse ponto, acerta ao não dramatizar em excesso. Os dois personagens se observam com respeito e dor, sem precisar explicar o que está dito no silêncio.
“Gladiador 2” não tem a estrutura clássica de ascensão e queda. Ele trabalha com desvio e retorno. A jornada de Lucius não é de transformação, mas de revelação. Ao entrar novamente na arena, ele não se reinventa, apenas aceita que não há outro lugar para estar. A luta contra Acacius é intensa, mas não definitiva. Quando tudo termina, o espectador não sente catarse. Sente peso. O peso do que continua, do que não foi resolvido. E talvez essa seja a escolha mais corajosa do filme. Não oferecer a ilusão de que a justiça foi feita, mas o lembrete de que o Império, qualquer império, se regenera pelas mesmas cicatrizes.
Scott parece consciente disso. Desde “Napoleão”, sua relação com figuras históricas se tornou mais amarga. A grandiosidade das conquistas perdeu espaço para o vazio das consequências. Em “Reino dos Céus”, ele já havia flertado com essa ideia: que não há glória na guerra, só poeira e lápides. Em “Perdido em Marte”, deslocou a ação para o espaço, mas manteve a questão central: o que vale ser salvo? Aqui, retorna à areia e à carne. Mas em vez de buscar a epopeia, busca a erosão. E isso é novo. Ou melhor, é antigo, mas só agora parece caber no cinema que ele insiste em fazer.
O maior risco de “Gladiador 2” é sua reverência ao próprio peso. Em alguns momentos, o filme hesita diante de sua herança. Há falas que soam mecânicas, cenas que parecem precisar existir mais por obrigação narrativa do que por convicção. Há um esforço claro em evitar a repetição, mas isso, às vezes, gera ausência de densidade. A trilha sonora, agora mais atmosférica e menos melódica, reforça esse distanciamento. Hans Zimmer, coautor do impacto sonoro de 2000, retorna com parcimônia. A música não conduz, apenas acompanha. O que é elegante, mas também menos memorável.
Ainda assim, o filme permanece. E permanece porque tem algo a dizer. Não sobre o passado, mas sobre agora. Em um tempo de narrativas fáceis, de vilões caricatos e heróis plastificados, “Gladiador 2” aposta na ambiguidade. Mostra que o sangue continua a escorrer, mas nem sempre pelas mãos certas. Que a violência, quando sistematizada, é tão silenciosa quanto eficaz. E que as arenas nunca deixam de existir; elas apenas mudam de nome. A última imagem do filme — não revelarei qual — sugere que mesmo a vitória pode ser um ponto final desnecessário. O Império não se desfaz. Ele apenas muda de rosto.
A crítica, como o cinema, também exige memória. E Scott parece saber disso. Seu épico não é um grito de guerra, mas uma arqueologia de silêncios. O tempo passará e, como os arcos do Coliseu, muita coisa vai cair. Mas há filmes que resistem por serem imperfeitos no tempo certo. “Gladiador 2” é um deles. Uma ruína ainda em pé, feita de areia, aço e tudo aquilo que os deuses, se existirem, já não ousam assistir.
★★★★★★★★★★