Em uma banca de rua em Brasília, entre revistas amareladas e gibis em plástico bolha, um exemplar gasto de “Assassinato no Expresso do Oriente” repousa ao lado de um romance espírita. Em escolas do interior de São Paulo, professores usam “E Não Sobrou Nenhum” para despertar adolescentes entediados com leitura obrigatória. Em Goiás, um sebo exibe, na vitrine, uma edição da L&PM em que o nome “Agatha” já sumiu da lombada. E o mesmo se repete, com variações, climas e alfabetos, em Teerã, onde “Murder on the Orient Express”, em farsi, divide espaço com poesia persa e romances censurados com bisturi. Em Jacarta, “The ABC Murders” é vendido entre incensos e tabloides. E nas livrarias de Montevidéu ou Buenos Aires, suas obras seguem reeditadas ano após ano, muitas vezes em coleções de bolso, traduzidas para um espanhol neutro e direto, como se o crime, ali, também tivesse sotaque próprio. A ubiquidade silenciosa dessas edições, muitas vezes informais ou relidas até o desmanche, é testemunho de algo que a crítica acadêmica hesitou em reconhecer por muito tempo: que Agatha Christie não apenas escreveu ficção de mistério com primor artesanal, mas construiu um fenômeno linguístico global, uma literatura tão traduzida quanto o medo, tão universal quanto a suspeita.
Segundo o “Guinness World Records”, Agatha Christie é a autora mais traduzida da história. Seus livros atravessaram fronteiras, idiomas e gerações, com mais de 7.200 traduções registradas em mais de 100 línguas, segundo o banco da UNESCO. Essa diversidade linguística coloca sua literatura não apenas em países, mas em línguas, dialetos, versões formais e informais, distribuídas por todo o globo, confirmando que seu impacto ultrapassa fronteiras. São histórias que se metamorfoseiam em cada idioma, mas permanecem reconhecíveis e coesas. São mais de dois bilhões de exemplares vendidos ao longo do século, número comparável apenas aos de Shakespeare e da Bíblia. Mas ao contrário de Shakespeare, cuja tradução exige reimaginação poética, ou da Bíblia, que impõe aparato teológico e institucional, os livros de Christie circulam com uma leveza suspeita. Passam de mão em mão, de país em país, de idioma em idioma, como se o crime contido em suas páginas fosse um idioma por si só.

Agatha Mary Clarissa Miller nasceu em 1890, na cidade inglesa de Torquay, à beira do Canal da Mancha, em uma família de classe média-alta. Foi criada em casa, com liberdade para imaginar e tempo suficiente para cultivar o tédio, dois elementos que, somados, costumam produzir narradores. Sua mãe acreditava que crianças deveriam aprender a ler por conta própria, e Agatha, obediente, só leu quando quis. Quando leu, não parou mais. Em vez de contos de fadas, preferia histórias de detetive, enigmas de jornal, fórmulas de farmácia. Durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhou como enfermeira e farmacêutica, conhecendo, ali, os venenos que usaria como recursos narrativos com precisão quase clínica.
Sua estreia como romancista veio em 1920 com “The Mysterious Affair at Styles” (O Misterioso Caso de Styles), que apresentava ao mundo Hercule Poirot, um detetive belga excêntrico, minucioso, metódico, quase sempre infalível. Christie disse que o criou por conveniência, mas ele logo se tornou personagem-símbolo de seu universo moral e narrativo. A ordem sempre seria restaurada, mesmo quando tudo parecia perdido. Em 1926, após uma crise conjugal, Agatha desapareceu por onze dias, num episódio até hoje cercado de especulações. Teria perdido a memória, encenado a própria ausência, colapsado psicologicamente? Nunca explicou com clareza. Mas o público, desde então, a leu com mais fascínio, não só pela engenhosidade dos enredos, mas pela sombra que parecia envolvê-la.
Ao longo das décadas seguintes, Christie escreveria mais de 80 romances, peças de teatro, coletâneas de contos, uma autobiografia e até mesmo poemas. Criou também Miss Marple, a detetive idosa e intuitiva, cujo método era a observação paciente e a analogia entre pequenas vilanias do cotidiano e os grandes crimes da humanidade. Suas histórias mantinham uma lógica férrea. Havia sempre pistas suficientes, um elenco limitado de suspeitos, uma motivação escondida em plena vista. Seus romances funcionavam como máquinas disfarçadas de histórias. A graça não estava no crime, mas na estrutura que o engolia. Não na morte, mas na ordem que dela renascia. Ler Christie era menos como ler e mais como montar algo, e acreditar, mesmo que por um instante, que a realidade também pudesse ser desmontada, analisada e resolvida.
Essa vocação para a clareza, para a estrutura e para a linguagem direta, tão distante da literatura de fluxo, da introspecção existencial, do modernismo europeu, foi justamente o que permitiu que sua obra circulasse com facilidade. Diferente de autores que exigem tradução de estilo, de espírito ou de contexto, Christie exige apenas tradução literal. Seus personagens são reconhecíveis em qualquer cultura, seus crimes partem de impulsos universais, suas soluções oferecem o alívio da ordem recomposta. Como explicar o sucesso de “O Caso dos Dez Negrinhos”, um romance de isolamento e paranoia, em mais de cem idiomas? Publicado originalmente em 1939 com um título que hoje seria impensável, “Ten Little Niggers”, o livro foi renomeado em diversas edições internacionais para “And Then There Were None” (“E Não Sobrou Nenhum”), numa tentativa tardia de apagar o racismo evidente no título e na canção que estruturava a narrativa. A mudança não altera o núcleo da história, mas torna inevitável a reflexão. O livro mais vendido de Agatha Christie carrega, em sua origem, o peso de uma linguagem colonial, e sua permanência exige que o leitor de hoje leia com olhos críticos. Ainda assim, talvez o fascínio persista porque, no fundo, não é um romance britânico. É uma parábola moderna sobre culpa e retribuição, que pode se passar numa ilha ou num apartamento, num país qualquer.
As adaptações multiplicaram-se. No teatro, “A Ratoeira” tornou-se a peça de maior longevidade da história do West End, área central de Londres conhecida por seus teatros e musicais, frequentemente comparada à Broadway nova-iorquina. No cinema, diretores de estilos tão diferentes quanto Sidney Lumet e Kenneth Branagh reinterpretaram suas tramas com astúcia visual. Na televisão, a série com David Suchet como Poirot se tornou uma referência definitiva. E mesmo obras que não citam seu nome diretamente, como o filme “Entre Facas e Segredos”, de Rian Johnson, devem à lógica narrativa de Christie mais do que admitem. Sua fórmula de “quem matou?” reaparece em jogos, séries de streaming, programas de televisão, reality shows. É um método, um arquétipo, uma arquitetura do desejo por respostas.
Nos últimos anos, seu legado passou por revisões. Algumas edições foram reeditadas com cortes em expressões racistas ou anacrônicas. Houve debates acalorados sobre a integridade da obra original, o papel do editor, os limites da atualização cultural. Em todas essas discussões, Christie permanece intacta no essencial. Suas histórias continuam sendo lidas, relidas e traduzidas. Em parte, porque seus crimes nunca envelhecem, mas também porque seus livros nunca foram apenas sobre crimes. Foram sobre a estrutura do mundo. Sobre como as coisas parecem e o que elas escondem.
Agatha Christie morreu em 1976, aos 85 anos. Seu nome, no entanto, nunca desapareceu. É possível que hoje, neste exato momento, alguém esteja abrindo um de seus livros pela primeira vez, em Manaus, em Montreal, em Marrakesh. Em alguma língua, em algum formato, em papel ou numa tela. Talvez não saiba muito sobre ela, talvez nem a considere “alta literatura”. Mas continuará lendo, porque algo ali é irresistível. A promessa de um mistério, a certeza de uma revelação. O pacto de que, ao final, a verdade virá, e que será, como sempre, mais estranha do que a ficção.