O meu passado de atleta me credencia a morrer dormindo

O meu passado de atleta me credencia a morrer dormindo

Eu queria morrer dormindo. Impávido. Sem culpa. E ser encontrado pela diarista de coluna torta, a segurar o frasco de Diabo Verde numa mão e o escovão na outra. Maria. Sempre uma Maria na vida da gente, pedindo licença para entrar na suíte do casal e botar pra quebrar. Queria ser pego com um sorriso enigmático no rosto, paralítico, nem alegre, nem triste, de quem deixou a vida para entrar para a história. Seria um luxo descer à mansão dos mortos, sem contribuir com um só tijolo, portando o semblante misterioso de uma Monalisa. Queria morrer que nem Passarinho. Passarinho foi um repórter talentoso, um correspondente de guerra que sucumbiu dormindo — ô, inveja! — vitimado por um Tomahawk que entrou pela janela do seu charmoso quarto de hotel, no meio da madrugada. Tem gente que não se emenda. Passarinho, porque tinha a palavra PRESS impressa no colete, se considerava imune à normas gramaticais e à artilharia pesada. Ele tava quietinho em Laranjeiras, Rio de Janeiro — ô, cidade maravilhosa! —, com a alma cantando, com as balas zunindo, perdidas, em busca de um alvo inocente no qual se assestar. Não tinha nada que se oferecer para cobrir guerra dos outros no estrangeiro. Eu queria morrer no Brasil. Eu queria morrer de velho. Que nem um senador da república sob prisão domiciliar, o último recurso de um canalha senil. Segurando a mão de uma mulher bonita. Minha filha. Minha neta. Minha amante predileta. Não importa. Com gente estranha se acotovelando na porta. Esticando o pescoço, farejando com os seus focinhos o cheiro da morte, para dar uma última espiadela sobre o corpo inerte, detonado pelo tempo, de um indivíduo ilibado, com sobrancelhas feitas, que, com toda certeza, vai fazer muita falta. Que o diga o Fisco. Prefiro pagar os meus boletos impressos. Se eu tiver que ser velado à noite — paciência, prezados! — apaguem as luzes da sala mortuária e façam uma fogueira com títulos, comendas, duplicatas, livros contábeis e papéis podres em memória de mim. Pintou um clima de Última Ceia. Se eu fosse um verme, eu me comeria. Quando eu esticar as canelas, por obséquio, não incomodem o vigário. Não tenho o direito de lhe empatar uma foda na sacristia. Faz tempo que ando inadimplente com o Vaticano. A minha alma tresloucada, desencarnada pelos caninos brancos desse mundo cão, haverá de entrar pelo cano do falecimento, rumo ao Além, para vazar solitária, condoída, saudosa de um bola-gato, de um Fla-Flu, de uma emenda impositiva pingando na conta, numa tentativa infrutífera de se impor, antes de jazer perplexa e cansada numa grota enigmática concebida pelo Criador do Universo. Em matéria de Metaverso, já vi de tudo nessa vida. Até Jesus tomando refrigerante. O meu passado de atleta me credencia a morrer dormindo, seja por míssil, seja por loucura, seja por esquecimento. A glória eterna enseja riscos. Que nem passarinho que, ao andar com morcego, acorda de cabeça para baixo.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.