É raro o livro que termina e deixa em seu lugar uma espécie de ausência. Não de história, ela se encerra, mas de presença. Como se algo ali tivesse respirado conosco, e agora faltasse ar. São romances que não se apagam com a última página, mas reverberam, subterrâneos, pedindo retorno. Não para entender o que escapou, mas para reencontrar aquilo que, estranhamente, ficou.
“Nostalgia”, de Cărtărescu, talvez seja o exemplo mais íntimo dessa vertigem. Lê-se como quem atravessa corredores oníricos, onde o tempo desmancha e a infância é um espelho deformado do futuro. Há um menino que move objetos com a mente, há um arquiteto de destinos, há Bucareste, mas nada é exatamente o que parece. As imagens se embaralham como sonhos mal acordados. Ao fim, a única certeza é a de que o livro nos leu antes de ser lido. E que não basta uma vez.
Em “Sátántangó”, de Krasznahorkai, o movimento do retorno é literal e simbólico. A vila soterrada em lama parece presa numa repetição hipnótica. O falso messias chega e, com ele, o vórtice. Cada frase se arrasta como uma procissão sem fim, e o tempo escorre, viscoso. O fim reencontra o começo. Reabrir o livro é quase inevitável, não para escapar, mas para afundar mais fundo.
Com “Meridiano de Sangue”, McCarthy abandona qualquer ternura. O deserto, aqui, é escritura e abismo. O garoto sem nome atravessa paisagens bíblicas onde a morte é rito e o juiz Holden dança no limiar do humano. Não há enredo que salve, não há salvação que se ofereça. E, mesmo assim, há beleza. Há uma linguagem que sangra. Terminá-lo e não recomeçar seria uma forma de traição.
E então, “Os Irmãos Sisters”. O faroeste torcido de Patrick deWitt guarda um coração delicado sob a poeira e as balas. Eli Sisters, cansado de matar, começa a notar o peso do silêncio. O humor seco, quase melancólico, nos embala até que o livro acabe, e aí queremos voltar. Não por violência, mas por ternura. Uma ternura que chegou tarde, mas ainda pulsa.

Eli Sisters atravessa as paisagens poeirentas do Oeste americano ao lado do irmão Charlie, pistoleiros a serviço de um mandante invisível. A missão — eliminar um homem durante a corrida do ouro — se torna pano de fundo para um mergulho silencioso em conflitos internos, rivalidades fraternas e desejos de transformação. A narrativa, conduzida em primeira pessoa, revela uma voz melancólica, terna e brutal, marcada pela simplicidade com que Eli observa o mundo e a si mesmo. Enquanto Charlie se mantém afiado e impiedoso, Eli começa a questionar os gestos automáticos da violência, o próprio corpo, a fome constante, o peso do sangue derramado. A estrada, nesse percurso, deixa de ser apenas geografia e se torna um campo moral: um espaço onde a masculinidade é posta à prova e onde a ternura luta para emergir. O estilo seco, pontuado por humor sombrio e compaixão contida, conduz o leitor por uma narrativa que parece saber que seu tempo está no fim — e que resta pouco a ser salvo. Sob o pó, sob as balas, pulsa um desejo tímido de redenção.

Cinco narrativas se entrelaçam em um universo onde a realidade se dissolve em memória, desejo e delírio. Um menino prodígio move objetos com o pensamento, mas carrega a angústia de uma infância que o ultrapassa. Um revolucionário misterioso arquiteta vidas alheias como se construísse fábulas. Um morador de Bucareste mergulha em sonhos densos, misturando ruas reais com cidades interiores. Nenhum deles é protagonista absoluto: cada voz parece parte de uma consciência maior que sussurra à margem do tempo. O livro alterna registros — lírico, filosófico, onírico — para sondar o inconsciente com uma linguagem que é ao mesmo tempo erudita e visceral. O tom flutua entre o sublime e o grotesco, explorando os limites da percepção humana e a nostalgia como força criativa. O tempo não avança, ele pulsa. As memórias não explicam: expandem. Bucareste surge como cidade-matriz, onde ruínas e visões convivem, e o passado é matéria viva. A infância, aqui, não é um ponto de partida, mas um estado alucinatório. As histórias, embora autônomas, compõem um corpo literário uno, feito de labirintos e espelhos. Ao invés de oferecer respostas, o livro propõe uma imersão. A leitura se torna um sonho lúcido, em que o real cede ao simbólico, e a nostalgia, longe de ser saudade, torna-se território de transfiguração.

Na vastidão inóspita da fronteira sul dos Estados Unidos, um garoto sem nome, fugitivo da infância e da linguagem, é tragado por um mundo onde a violência não é exceção, mas regra cósmica. Ainda adolescente, ele é recrutado por uma gangue de caçadores de escalpos que avança por desertos e vilarejos em um rastro de extermínio. O juiz Holden, figura de poder enigmático, emerge como força intelectual e brutal, discursando entre massacres, dançando entre cadáveres. Narrado em terceira pessoa impassível, o romance rejeita qualquer sentimentalismo e oferece imagens secas, muitas vezes bíblicas, que atravessam a consciência do leitor como marcas em pedra. O garoto caminha entre homens que matam por lucro, impulso ou fé — e às vezes pelos três. Sua trajetória não é de formação, mas de dissolução: cada gesto o afasta de qualquer possibilidade de redenção. A linguagem, sintética e profética, transforma o deserto em escritura e a guerra em ritual. O tempo se curva, o espaço se dilui, e a narrativa avança como uma procissão sem fim rumo ao abismo. Nada se explica, tudo se mostra. O livro não busca conforto: oferece apenas a constatação de que a beleza pode residir no horror, e que o mal, em certas paisagens, é apenas outra forma de ordem.

Numa vila húngara afundada na lama e no esquecimento, a vida dos moradores se arrasta entre bebida, paranoia e ruína. Até que surge a notícia: Irimiás — antes dado como morto — está voltando. O simples rumor de seu retorno transforma a inércia em movimento e a decadência em devoção. Irimiás, figura dúbia entre profeta e farsante, converte o desespero alheio em espetáculo, conduzindo os aldeões em uma jornada de promessas vazias. A narrativa, em terceira pessoa, desliza por vozes diversas e transita entre o grotesco e o sublime, o concreto e o espectral. Cada capítulo opera como um passo de tango: avanço e recuo, ilusão e repetição. A linguagem é espiralada, com frases que se arrastam como o próprio tempo do vilarejo, convocando o leitor a uma experiência de hipnose e resistência. Não há heróis nem destino, apenas corpos à deriva sob uma lógica opaca. A vila se torna metáfora de um mundo em colapso, onde qualquer sentido precisa ser imposto — mesmo que por engano. O poder, aqui, se revela como manipulação narrativa, e a fé como ilusão coletiva. O romance se recusa a oferecer centro ou alívio: a dança continua, mesmo quando não há mais música. O retorno não leva a lugar algum, exceto de volta ao começo.