É estranho pensar que um livro possa rir do seu leitor, especialmente quando o leitor não percebe logo de início, mas a verdade é que, em algum ponto da vida, alguém pode se encontrar preso numa armadilha feita de papel e palavras, armadilha essa que nem percebe ter armado para si mesmo. Não que o autor tenha se dado ao trabalho consciente de criar uma cilada literária: talvez nem saiba fazê-lo, talvez seja até pior — talvez o autor também tenha caído na própria armadilha, enfeitiçado pela voz que criou, convencido da sua própria genialidade, algo que só os medíocres podem fazer com verdadeira convicção. Pois há uma arrogância peculiar aos medianos que se pensam brilhantes, aquela espécie de altivez ingênua que passa despercebida por eles mesmos, enquanto salta aos olhos de quem observa de longe.

No caso de Raphael Montes e seu romance “Uma Família Feliz”, a experiência da leitura é quase sempre essa: um incômodo crescente, uma sensação de déjà-vu cansado, uma certeza de já ter lido aquilo em algum lugar melhor, mais bem-feito, mais honesto. Montes é desses escritores que aprenderam cedo demais o truque, o golpe narrativo simples, a facilidade do suspense barato. O tipo que descobriu, talvez numa oficina qualquer de escrita criativa, que basta juntar ingredientes previsíveis para enganar um leitor pouco exigente: um núcleo familiar aparentemente normal, uma trama que se quer chocante, o segredo guardado que vai se revelando lentamente, capítulo após capítulo, numa estrutura que poderia ser copiada e colada de tantos outros livros, filmes, séries e novelas — mas que Montes acredita, sinceramente ou não, estar criando pela primeira vez.
E talvez o mais difícil seja justamente acreditar na sinceridade do autor, porque é fácil perdoar quem erra por ingenuidade, quem se perde num caminho inédito tentando encontrar algo novo, mas é impossível perdoar quem insiste em repetir fórmulas gastas acreditando estar entregando algo revolucionário, como quem leva o prato requentado à mesa esperando elogios por uma comida fresca. É essa crença arrogante — de que seu leitor nunca terá visto antes aquela fórmula, aquele personagem previsível, aquele diálogo forçado — que transforma a leitura numa experiência quase ofensiva.
A narrativa de “Uma Família Feliz” não oferece desafios, não exige reflexão, não provoca emoções autênticas; o que faz é reduzir o leitor a uma caricatura, alguém incapaz de perceber as engrenagens toscas por trás da trama, incapaz de sentir quando está sendo enganado. O livro insiste em apontar ao leitor o óbvio, sublinhando cada reviravolta como se cada leitor fosse incapaz de notar sozinho que algo mudou. É como ser conduzido pela mão por alguém que acredita estar guiando um cego quando, na verdade, está apenas sendo condescendente com quem enxerga perfeitamente.
O problema central talvez nem seja exatamente a simplicidade da narrativa, porque muitos livros excelentes são simples, diretos, francos em sua proposta. Não é um pecado ser direto. O problema de Montes é que ele finge uma profundidade inexistente, como se, ao jogar clichês no liquidificador e acrescentar uma camada de violência gratuita ou uma frase de impacto de tempos em tempos, pudesse alcançar alguma forma de brilhantismo. Acredita na potência de sua voz quando, na verdade, sua voz ecoa vazia, reverberando num salão vazio onde ninguém escuta além dele mesmo.
O livro finge ousadia, quer se vender como subversivo, talvez até como um retrato cru da classe média brasileira contemporânea — como se bastasse dizer “classe média brasileira contemporânea” para atingir algum nível automático de relevância. E, ao fazer isso, reduz todos os personagens a marionetes previsíveis, movendo-se num palco artificialmente montado para sustentar um suspense que nunca se concretiza de verdade. A violência é gratuita não pela crueza ou pelo realismo, mas pelo exibicionismo infantil, como uma criança mostrando com orgulho um machucado que não dói mais, só para impressionar os amigos.
Ao mesmo tempo, Montes não consegue esconder completamente o talento técnico que, por vezes, ameaça emergir. Em algumas passagens isoladas, é possível perceber algo como um lampejo, uma frase ou outra que quase escapa da banalidade, quase alcança um nível interessante, quase salva o texto da mediocridade que o rodeia — mas esses lampejos são rápidos demais, soterrados logo em seguida por parágrafos de explicações excessivas, diálogos artificiais, pensamentos mastigados.
E assim a leitura segue como uma promessa não cumprida, algo que poderia ser melhor mas que opta pela comodidade. O livro se recusa a acreditar na inteligência de quem o lê, talvez por medo de não ser compreendido, talvez por medo de não ser amado. E ao fazer isso, Montes acaba por insultar o mesmo leitor que deseja conquistar, como alguém que mente numa conversa íntima, convencido de que nunca será descoberto, enquanto o interlocutor já percebeu há muito tempo a mentira e apenas sorri educadamente, constrangido demais para interromper.
Talvez seja isso, afinal, o que mais incomoda em “Uma Família Feliz”: não exatamente a fraqueza da narrativa, nem mesmo a repetição cansativa de fórmulas e clichês, mas a soberba quase inocente com que o autor apresenta tudo isso. Uma ingenuidade que chega a ser insultuosa, que subestima o leitor e pede, ainda por cima, aplausos. Um livro escrito para leitores imaginários, supostamente impressionáveis, supostamente incapazes de perceber o truque gasto, supostamente interessados numa profundidade fingida.
Ao fechar o livro, fica aquela sensação estranha e incômoda de que se perdeu tempo numa conversa enfadonha, ouvindo uma história contada por alguém que acredita demais na própria inteligência. Talvez seja essa a maior tragédia: o romance que poderia apenas ser esquecível, mas que se torna inesquecível justamente pela arrogância com que se recusa a desaparecer. O livro que insiste em existir como genial, enquanto o leitor, silenciosamente, percebe que esteve o tempo todo diante de uma fraude gentil, que sorri enquanto mente, esperando nunca ser pego, sem perceber que o pior já aconteceu: foi descoberto há muito tempo, e ninguém teve coragem de avisar.