Nem toda estante fala. Algumas apenas sussurram — e o que dizem é quase sempre desconcertante. Quando investigadores vasculham os quartos de assassinos em série, esperam encontrar indícios concretos: mapas, facas, recortes, restos. Mas há vezes em que encontram romances. Ficções. Ensaios filosóficos. Clássicos universais ao lado de instrumentos de horror. E o espanto, mais do que com a violência, vem com o fato de que havia leitura. Que havia linguagem, pensamento, mundos paralelos sendo acessados por aqueles que, no mundo real, interromperam brutalmente as trajetórias de outros.
Há quem diga que isso é coincidência. Outros preferem o caminho do simbolismo, como se os livros contivessem, de alguma maneira, a gênese do desvio. Mas talvez a verdade esteja entre os dois. Afinal, a literatura, mesmo a mais refinada, não é isenta — ela também carrega abismos. Há narradores quebrados, personagens amorais, atmosferas doentias e contradições éticas em tantas páginas que amamos. Para a maioria dos leitores, isso é catarse, reflexão, purga. Mas para alguns… é uma forma de identificação. E aí o livro deixa de ser metáfora e se torna manual, ou confissão.
“O Apanhador no Campo de Centeio”, lido obsessivamente por Mark David Chapman. “O Estrangeiro”, que pareceu confirmar a apatia de Ted Kaczynski diante do mundo. “A Revolução dos Bichos”, empilhado ao lado de escritos sádicos de Richard Ramirez. Não é que esses livros “explicassem” os crimes. Mas havia neles algo que ressoava. E é nessa ressonância que mora o incômodo.
Porque não há nada de monstruoso em um livro, por mais sombrio que seja. O monstro, quando aparece, está sempre do lado de fora — com olhos, mãos, respiração. Mas, às vezes, é o livro que o acalma. Que o nomeia. Que o acompanha enquanto tudo desmorona. E isso basta para deixar qualquer leitor honesto, qualquer amante da literatura, com uma dúvida que não se silencia: o que, afinal, pode ser lido nas entrelinhas de quem lê?

Uma agente em formação do FBI é convocada para uma tarefa delicada: extrair informações de um psiquiatra condenado por assassinatos canibalísticos, a fim de capturar outro serial killer em atividade. A missão, que parece técnica e objetiva, rapidamente se transforma em um duelo psicológico. A cada entrevista, a protagonista entra mais fundo na mente do criminoso, desnudando não apenas a lógica do predador, mas também suas próprias fragilidades. A narrativa, contida e precisa, constrói tensão a partir dos silêncios, das pausas e dos não ditos — o horror reside menos no ato, mais na antecipação, na manipulação, na sugestão. O livro explora o espaço cinzento entre a inteligência e a monstruosidade, entre o método e o impulso. Encontrado entre os pertences de Robert Berdella, conhecido como o “açougueiro de Kansas City”, o romance ecoava perversamente em seu modus operandi: o controle absoluto, o fascínio pela dominação psicológica, o silêncio entre os gritos. A obra não glorifica a violência — mas tampouco a esteriliza. Ao contrário, mergulha nos dilemas éticos e emocionais de quem precisa enfrentar o horror sem se perder dentro dele. A personagem principal, ao decifrar o outro, arrisca se decifrar também, e nesse processo, o leitor é arrastado para uma escuridão que observa de volta.

Em meio a uma crítica radical à psicanálise tradicional, Deleuze e Guattari propõem uma nova maneira de pensar o desejo: não como falta, mas como força produtiva. Contra o modelo edipiano — centrado na família, na repressão e no inconsciente como teatro — os autores lançam um manifesto filosófico que busca libertar o desejo de suas prisões simbólicas. O texto é denso, técnico, fragmentado, mas também combativo, alimentado por uma urgência política e existencial. O desejo, aqui, não é doente nem precisa ser curado: é sabotado por sistemas que transformam fluxos em neuroses, corpos em engrenagens, subjetividades em obedientes. Anders Breivik, autor de um dos maiores massacres da história recente da Noruega, possuía este livro entre seus materiais de leitura. A relação não é causal, mas perturbadora. A forma como o manifesto desconstrói a lógica de controle institucional e propõe um desmonte das estruturas estabelecidas foi distorcida em sua leitura pessoal como justificativa para o ataque ao que via como “opressão cultural”. O texto original, no entanto, não legitima a violência — ele desnaturaliza categorias, abre espaço para pensar o inconsciente como campo de potência política. Lido com discernimento, é provocação filosófica. Em mãos radicais, torna-se combustível para interpretações destrutivas. A obra resiste a leituras simples, e talvez por isso mesmo, seja tão perigosa quanto

Em um povoado inventado, de nome Macondo, uma família atravessa gerações prisioneira de uma história que se repete. Os Buendía — com seus nomes reincidentes e seus amores marcados pela tragédia — vivem entre o fantástico e o cotidiano, como se os dois fossem um só. A narrativa, conduzida por uma voz onisciente que flutua no tempo, compõe um universo onde levitações são tão plausíveis quanto guerras civis, e onde a memória, mais que registro, é maldição. Cada personagem nasce carregando os traços de seus antecessores, como se o destino estivesse impresso antes mesmo do nascimento. A obra, escrita com frases longas e cadência hipnótica, não se apressa: observa o tempo como quem observa um rio cheio de curvas já conhecidas. O livro foi encontrado entre os pertences de Israel Keyes, um dos serial killers mais frios e meticulosos da história recente dos Estados Unidos. Sua escolha desconcertante por essa leitura — aparentemente oposta à sua natureza — levanta perguntas perturbadoras: teria se encantado com a ideia de repetição inevitável? Com o isolamento como herança? Com a persistência da escuridão mesmo em cenários encantados? O romance é, ao mesmo tempo, uma fábula e uma elegia: narra a beleza da invenção, mas também o fardo de um mundo condenado a não aprender com os próprios erros.

Um adolescente errante caminha por Nova York como quem atravessa os escombros de uma inocência perdida. Fugindo do colégio, da autoridade e de tudo que represente o mundo adulto, sua voz é aguda, sarcástica e profundamente solitária. O que poderia ser uma jornada de autodescoberta revela-se, aos poucos, um mergulho no niilismo de alguém que não encontra espelho nem amparo nas instituições ao redor. A cidade lhe serve de palco e cárcere: caótica, impessoal, cheia de ruídos e promessas falsas. Cada interação — com freiras, ex-namoradas, professores — parece reafirmar sua incapacidade de pertencer, sua recusa em se adaptar. A fratura entre o que se sente e o que se espera sentir transforma a narrativa num desabafo vertiginoso. Essa mesma inquietação encontrou eco sinistro na mente de Mark David Chapman, o assassino de John Lennon, que carregava um exemplar do livro consigo no momento do crime e declarou, mais tarde, ter se visto refletido no personagem. Para Chapman — e tantos outros leitores instáveis — a confusão entre crítica social e desordem psíquica se tornou perigosa. A infância idealizada e intocada permanece, ao longo da obra, como uma espécie de último abrigo moral — um campo onde ninguém cai. O texto, sem lições fáceis ou soluções, termina onde começou: no ponto cego entre a dor e a linguagem.

Numa fazenda dominada por maus-tratos e exploração, os animais se rebelam contra os humanos e tomam o controle. O que começa como uma revolução igualitária logo se transforma em tirania, com novos líderes impondo regras cada vez mais rígidas e contraditórias. O texto é alegórico, direto, irônico — e brutal. Cada animal representa não apenas um arquétipo político, mas também um estágio de ingenuidade ou oportunismo. Ao final, a distinção entre opressores e oprimidos se dissolve, e a linguagem — instrumento da libertação — torna-se ferramenta da opressão. Foi essa dinâmica de controle discursivo e manipulação simbólica que fascinou Richard Ramirez, o “Night Stalker”, serial killer que mantinha o livro entre seus objetos pessoais. A obra, embora concebida como crítica à União Soviética, extrapola o contexto histórico para refletir sobre estruturas universais de dominação. Em mentes perturbadas como a de Ramirez, a lógica de hierarquia reversa, de poder mascarado de justiça, ganha outra camada de identificação: o desejo de comandar pelo medo, a glorificação do caos como ordem. Orwell, no entanto, não defende o colapso — denuncia a facilidade com que o ideal cede à ambição. O horror do livro não está apenas no que acontece, mas no quão natural parece quando acontece. E no quanto os olhos se acostumam.

Um homem atravessa a vida sem adornos nem justificativas. Enterra a mãe sem derramar uma lágrima. Comete um assassinato sem ódio. Aceita um julgamento que o condena mais por sua indiferença do que por seu ato. A narrativa, conduzida por uma voz desidratada de emoção, é feita de frases curtas, pontuações contidas, silêncios. Camus constrói um protagonista que não nega o mundo — apenas se recusa a fingir que ele faz sentido. Tudo nele é ausência: ausência de raiva, de fé, de arrependimento. Mas é justamente essa ausência que provoca vertigem. O texto não tem grandes reviravoltas, nem gestos heroicos: apenas a revelação brutal de que a existência pode ser um acaso vazio. Foi esse olhar glacial que atraiu o terrorista e assassino Ted Kaczynski, o “Unabomber”, que mantinha o romance entre seus livros e identificava na recusa de Meursault uma forma de resistência ao conformismo. A leitura, em mãos desajustadas, torna-se espelho: o gesto literário de negação do absurdo é ressignificado como justificativa para a alienação violenta. Mas na obra original não há celebração do niilismo, apenas a exposição nua da angústia de existir num mundo que não oferece respostas. A estranheza que contamina o personagem se espalha — e contamina também o leitor.

Um fidalgo isolado e tomado por delírios literários decide vestir armadura, empunhar lança e tornar-se cavaleiro andante. Sua lógica não se submete à realidade, mas à fantasia que consome seus sentidos: vê gigantes onde há moinhos, castelos onde há estalagens, donzelas onde há camponesas. A voz narrativa oscila entre a sátira e a ternura, rindo do protagonista e, ao mesmo tempo, admirando sua fé patética na nobreza perdida. A estrutura do romance se constrói em episódios, que reiteram a luta entre imaginação e mundo concreto, entre idealismo extremo e desencanto inevitável. Ted Bundy, um dos mais infames serial killers do século 20, mantinha um exemplar do livro entre seus pertences. A conexão parece improvável à primeira vista, mas a obstinação de Quixote — sua recusa em aceitar o que vê, sua construção delirante de identidade — oferece um paralelo inquietante com a forma como criminosos como Bundy narravam suas próprias vidas: como cruzadas pessoais, justificadas por códigos só compreensíveis a eles. Em mãos desajustadas, a ficção heroica pode se converter em delírio legitimador. Cervantes, no entanto, constrói um romance que, apesar do riso, nunca ignora o abismo. No final, o cavaleiro enlouquecido não é só figura cômica — é também um espelho sombrio da necessidade humana de dar sentido, mesmo que à custa da verdade.