O livro que vendeu 1,5 milhão de cópias na semana de estreia e se tornou o maior fenômeno editorial de 2025

O livro que vendeu 1,5 milhão de cópias na semana de estreia e se tornou o maior fenômeno editorial de 2025

Era inevitável, talvez. Suzanne Collins nunca saiu, apenas se recolheu às margens do ruído, como essas figuras que somem mas nunca de fato deixam de existir, à espera de uma nova estação de caça. Desde a trilogia original, desde o rosto da Jennifer Lawrence estampado em mochilas de crianças que hoje têm dois empregos e uma conta conjunta no Spotify, havia esse hiato, o intervalo entre um impacto e outro. Mas agora, em 2025, com a indústria editorial em pânico e as redes sociais funcionando como rios subterrâneos de desejo coletivo, o retorno da autora foi menos um ato criativo do que uma coreografia precisa, delineada com a frieza dos algoritmos que sabem mais sobre nossos impulsos do que gostaríamos de admitir.

“Amanhecer na Colheita” não é um livro escrito para ser lido. É um livro projetado para ser lembrado, mencionado, embalado em vídeos de unboxing com fundo de LED roxo e música ambiente inspirada em vaporwave. Desde o título, que mistura misticismo pastoral com tensão épica, até a capa, com tons dourados que fingem uma promessa de redenção ou sacrifício, tudo ali opera num registro quase publicitário, uma encenação de profundidade que nunca se aprofunda. O enredo, quando se presta atenção, é um espelho deformado do que já conhecíamos. Um prelúdio que não é exatamente anterior, mas paralelo, com personagens que funcionam mais como arquétipos reprogramados do que como pessoas.

Amanhecer na Colheita, de Suzanne Collins (Rocco, 448 páginas, tradução de Regiane Winarski)

E ainda assim, há passagens, poucas, mas há, onde algo pulsa. Em especial nos momentos de silêncio. Quando a protagonista, uma jovem cujo nome parece ter sido gerado por um software que mistura termos botânicos com fonemas eslavos, se recusa a reagir. Há hesitação. Não no texto, que continua firme, funcional, às vezes até cansado de sua própria clareza. Mas na personagem. Em seus gestos. Há ali, por instantes breves, uma interrupção no fluxo narrativo, um pequeno ponto de tensão verdadeira que sugere que Collins, apesar de tudo, ainda sabe o que é escrever com dúvida.

É nesses raros momentos que se percebe, ela sabe. Sabe que está produzindo dentro de uma engrenagem. Sabe que o livro é uma resposta ao mercado, mais do que uma resposta à inquietação. Mas se permite, talvez como quem desenha com a unha na areia antes da maré subir, esboçar algo que não se encaixa. Uma frase quebrada. Um gesto falho. Um olhar que escapa da lógica da trama. E é nesses respiros que se vislumbra a escritora por trás da vitrine. A voz de alguém que, em outra vida, talvez tivesse escrito menos livros, mas mais palavras verdadeiras.

A estrutura do romance, entretanto, é tudo menos arriscada. Vemos o mesmo tipo de mundo dividido, a mesma lógica de opressão encenada para ser derrotada, a mesma curva de personagem que encontra no trauma o caminho da transformação. É uma fórmula, e como toda fórmula que funciona, ela resiste ao desgaste pelo uso massivo. Mas não se iluda. A emoção que se sente ao virar as páginas não vem da escrita, vem do reconhecimento. A familiaridade com o universo já estabelecido é o verdadeiro motor. Nada precisa ser explicado, tudo já foi visto.

Os diálogos são curtos, funcionais, às vezes incisivos, como se tivessem sido testados previamente em grupos focais. As descrições não se prolongam. As decisões narrativas são sempre claras, nítidas, não há zona cinzenta suficiente para desconforto. Collins parece escrever como quem monta um quebra-cabeça com peças que já conhece de cor. Não há espaço para titubeios. E isso, para o público que espera eficiência emocional, é uma virtude. Mas para quem busca risco, invenção, ambiguidade, é um beco iluminado demais.

E mesmo assim, o livro vendeu. Vendeu mais do que qualquer outro no ano. Quase dois milhões de cópias nas primeiras semanas, dezenas de edições traduzidas, adaptações já em fase de roteiro, hashtags em looping infinito. O sucesso não é literário, é industrial. Um triunfo de distribuição, sinergia de marca, desejo coletivo moldado por meses de teasers e campanhas virais. A escrita é apenas o veículo. O produto real é o pertencimento.

Não é exatamente justo acusar o livro de não ser literatura. Ele é. Mas é uma literatura funcionalizada. Esvaziada da hesitação que faz da arte um risco. É uma narrativa que não permite tropeços, não se demora, não erra. E talvez seja esse o problema. O leitor que termina “Amanhecer na Colheita” não sai transformado. Sai satisfeito. E a satisfação, nesse caso, é um sintoma de projeto bem executado, não de revelação estética.

É possível, no entanto, reconhecer a habilidade de Collins em operar dentro dessas margens. Ela sabe onde tocar, como medir os arcos de tensão, quando oferecer alívio. Seu domínio de ritmo narrativo é quase clínico. Mas também é aí que a literatura cede lugar à performance. Cada capítulo termina onde deve, cada conflito emerge com timing quase matemático. E não há erro, não há perda. Há só o que foi previsto.

A crítica, aquela mais comprometida com a análise literária do que com o entusiasmo editorial, oscilou entre a condescendência e a resignação. Muitos reconhecem que o livro funciona. Alguns admitem que gostaram. Poucos se arriscam a chamar de bom. O elogio mais comum é o da eficácia. Eficaz como uma campanha de vacina, como um sistema de irrigação, como um plano de marketing. Mas será que isso basta?

Talvez. Para o momento em que vivemos, onde o ruído é tanto que qualquer gesto claro já é um alívio, talvez um livro como esse, que entrega o que promete, que não desafia, que não fere, seja o que o público quer. E não há crime nisso. Apenas consequência.

“Amanhecer na Colheita” é um espelho onde poucos querem ver o próprio reflexo. Porque ele revela não apenas o que consumimos, mas como escolhemos consumir. E talvez, só talvez, diga mais sobre nós do que gostaríamos de admitir. O livro, no fim, é menos um objeto estético do que um sintoma. Um ponto de interrogação embalado como ponto final.